quinta-feira, 29 de março de 2018

Mais de quinhentas prosas e nenhum poema lírico

   Duas ou três palavras escapam da gaveta, deslizam pela mesa  e caem no chão. Não fazem barulho, não se quebram, não se partem em pedaços grandes ou miúdos, não levantam poeira, não despertam o cão que dormia no mesmo piso, onde elas agora repousam. As palavras caídas aguardam passivas que alguém as veja, as recolham cuidadosamente e as guardem na gaveta ou as levem para fora, para a luz, para um passeio ou viagem longa.

  As duas ou três palavras, às dez horas de uma quinta-feira,  sentem um toque áspero de partida nas costas, são varridas na mesma manhã da queda, tomadas por uma pá de plástico rosa e levadas ao lixo. As duas ou três palavras com as quais ninguém se importa. Nem o cão para importuná-las, roçar o seu focinho nelas e, sem querer, salvar parte delas da escuridão do plástico preto.

  As palavras invisíveis, que não causam comoção nem com a queda, tampouco são notadas na partida, não são as as últimas de uma história ou, aos menos, as primeiras. As palavras encerradas em um lixo não reciclável, e que logo irão, por descuido, para um aterro sanitário fétido e desordenado eram as possibilidades de uma continuação, de um meio esperançoso de uma narrativa abreviada pela falta delas.
  As palavras que já existiam prontas, acabadas, mas das quais ninguém se apercebeu a tempo, foram subitamente varridas do assoalho e envolvidas pela indelicadeza de um descarte involuntário. Não há quem lamente pelo que não foi visto; mas a ausência chegará num domingo, no final da tarde.

  As duas ou três palavras que ninguém viu escorrerem pelas frestas da madeira de uma gaveta pouco utilizada, eram as únicas a explicarem um sentimento, uma angústia não comunicada, uma expectativa calada, por não encontrarem os lábios certos.
  Banidas da sua utilidade, as palavras viajam para o deserto, onde tantas outras habitarão, terreno inseguro, longínquo e aberto, rodeado por urubus, moscas e desespero. As palavras certas, perdidas entre canetas, papéis,  caixas de cartões e fotos recortadas, são descartadas sem nunca serem reconhecidas. Farão falta, as duas ou três palavras; selarão destinos, as suas mortes não percebidas.

  Uma frase se atira do despenhadeiro, não houve lugar para ela em nenhum diálogo, desabafo, confissão, texto, nota ou música. Uma frase completa de estrutura e vazia de contexto se larga, completamente, de uma altura quase infinita para morrer em liberdade, porque não aceitou ser submetida a uma mentira. Uma frase longa no sentido e curta em sua forma, cansada da espera passiva numa cômoda de seis gavetas,  ganha a liberdade numa viagem inusitada em um bigode felino.
  Uma frase com sujeito, verbo, substantivo e predicado desiste de esperar por mais horas, dias, meses, anos de indecisão e se lança, corajosa, ao desejo de não sucumbir à escuridão das evitadas declarações.

  A frase certa, a única necessária, parte antes das luzes se acenderem e não deixará rastro algum da sua fuga. Mais de dez noites dormidas e nenhum sonho, uma frase que morava no inconsciente onírico partiu sem nunca ser exposta. A frase certa pulou na vastidão de um precipício e no seu lugar, um incômodo vazio na cômoda de seis gavetas.
 Acertar é distante, comprido e sutil, às vezes passa-se do tempo, do ponto e o acerto já ficou para trás. Vê-se somente uma sombra, uma silhueta ou nada. O acertar não existe mais.

  Mais de quinhentas prosas para encontrar o único poema que ela nunca consegue escrever. Viver talvez seja isto: correr sempre ao encontro daquilo que nunca acontecerá.
Mais de quinhentas prosas e nenhum poema lírico. A caneta não fala do que arde, não sublinha os desejos, não grifa as explosões da alma, só perde letras, sílabas, frases e tempo.
  As palavras são varridas para o lixo, sucessivas vezes, e nem o cão é capaz de salvar do desperdício da história que termina antes do fim, porque perderam-se as palavras nas gavetas, nos vazios, nos lixos, precipícios e silêncios. Mais de quinhentas prosas e nenhum poema que chegasse até ao final possível.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 04 de abril de 2018

Querida Amanda
Moça de requintadas crônicas

Li sua crônica e é verdade, estou em falta para trás - fui tragado pelo tempo. Chegarei nelas, mas nesta aqui, a busca será a palabra, como encantou Drummond em seu poema "A Palavra Mágica". (Carlos Drummond de Andrade, in 'Discurso da Primavera')

Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.

A palavra é um mistério humano. Fisiologicamente requer uma sequência de processos, com movimentos harmonicos entre o aparelho respitatório, as cordas vocais e a boca, com língua e dentes esperando pelo que vem de dentro.

Sairá com ódio, amor, indiferença, ira, interesse, desejo, prazer ou qualquer outro sentimento de tantos que podemos experimentar. Sairá ... e aqui nesta crônica, três se perderam da gaveta da memória e " às dez horas de uma quinta-feira, sentem um toque áspero de partida nas costas" . Há mágoa aí, dor e ranger de dentes. Palavras de adeus.

Como foram ditas, como foram ouvidas? Não interessa mais, já se perderam, outras virão preencher esta ausência - "eram as únicas a explicarem um sentimento, uma angústia não comunicada, uma expectativa calada, por não encontrarem os lábios certos."

A palavra maldita, a palavra mal dita, a palavra bendita, a palavra bem dita. Sempre aprendo muito quando venho aqui!

Um abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 05 de abril de 2018 (noite adentro tentando acompanhar um filme que eu já conheço o final "Com o supremo e com tudo"...o grande acordo nacional parece que saiu mesmo...enfim...)

Querido Paulo,
as coisas daqui não têm urgência ou obrigatoriedade, vão só se enfileirando aí sem propósitos, portanto não há faltas ou atrasos... Até porque, quando vem, traz preciosidades como essa do CDA, não me lembrava deste poema, não sei se o conhecia. Drummond escreveu sobre tudo e tudo sobre estes "tudos", é esta a minha impressão. Gosto muito dele, sempre. Gracias por tê-lo trazido.
Abraços,
Amanda