quinta-feira, 26 de abril de 2018

A vida não espera a vida

  Se o reflexo do espelho só admite as linhas e não alcança a profundidade, se os livros, os filmes, as
mensagens sem respostas se acumulam sobre a mesa, se as noites são longas e os anos curtos demais; se falta apenas uma semana para maio.
  Se não vêm buscar os jornais passados, que empilhados, mofam, cheiram mal e ocupam espaços e, mesmo assim, eu não os jogo fora, porque ainda podem vir. Se o noticiário do meio-dia me assusta, se as  palavras se repetem, porque não usam mais os dicionários, se os jornalistas plagiam textos e mentem, se as minhas pernas estão bronzeadas do joelho para baixo, porque já não vou mais à praia, se do último livro que eu li quase já não me recordo de nada.
  Se os bancos estão depredados ou sujos na praça, se as crianças correm fora das ruas, porque há perigo, se a minha roupa tem o mesmo cheiro da seção de limpeza do supermercado, se o pão francês já  não é mais um consolo às seis, eu não reclamo com ninguém. Faço um alongamento e vou às ruas, com uma malha que não resistirá  ao inverno.

  A rua não responde, não evidencia, não absolve. A rua não amplia o tempo dos anos nem negocia com a noite, não resolve os problemas da cidade, tampouco sabe dos meus. A rua é fixa, mas também é temporária; a rua é lugar e tempo, concreta nas pedras e abstrata nas lembranças de cada transeunte.   A rua é um universo de pedras,  prédios,  apartamentos com janelas abertas, mas também de sonhos, desilusões, voltas para casa involuntárias; ir ter com uma goteira no teto do banheiro e não com o mar. A rua é mulher e suas trezentas possibilidades, a rua é criança e quer descobrir o mundo, a rua é um gato ronronando sobre o sofá, a rua é  um cão latindo, correndo atrás de uma motocicleta que nunca para.

  Estacionado na rua paralela à avenida, um caminhão com as portas do seu baú abertas. No fundo, alguns suportes, pernas ou pedaços de sustentação de móveis: mesas, armários, prateleiras. Na parede do lado de fora do prédio da esquina, tábuas marrons, pretas e brancas, recostadas, separadas dos seus iguais complementares e suportes; uma mudança é uma festa de fragmentos daquilo que um dia foi inteiro e sólido. No apartamento que ficaria para trás, janelas escancaradas, portas e portões apoiados com pedaços de pau, para abrir mais espaço.
  Caminhões de mudanças e o caos, falta jeito para carregar a geladeira, o sofá que não passa pela porta: - Só pode ter entrado pela janela, então!
- Quem segura a planta? Quem viu minha bolsa? Cadê a caixa de documentos?

  Dois homens levantam uma máquina de lavar até os ombros e tentam atravessar a avenida, nenhum carro para. Eles precisam equilibrar a máquina por mais tempo e ainda terão geladeira e fogão, colchão e poltrona, caixas do quarto das crianças, do casal, da sala, da cozinha e do banheiro. No apartamento também morava um cão, que agora está junto com as crianças no gramado do prédio.
  Finalmente conseguem atravessar, quando um dos carros para e os outros seguem solidários, a máquina de lavar vai para o caminhão baú. Continuo a caminhar e vinte minutos depois, quando volto, o caminhão está mais cheio, o lado de fora do prédio também e, agora são três homens e uma mulher, carregando os objetos e tentando parar o trânsito. As crianças e o cão ainda estão no gramado, os motoristas seguem apressados, enquanto uma família se muda.

  Os carros quase não param, não dão passagem para os homens que carregam os passados que inauguraram um lar e farão de um outro cenário, mais uma casa.
  À beira do asfalto, os quatro pedem passagem, as crianças correm com o cão e eu sou forasteira demais para me demorar em frente à mudança de uma família que eu acabo de conhecer.
  Eu passo e eles atravessam mais uma vez, o caminhão baú já está quase completamente lotado, as crianças crescem e o cão envelhece, o ano corre e maio já aponta.

  A vida não para porque um apartamento fica vazio na quarta de manhã e outro será ocupado, porque as cortinas estão dobradas no fundo de alguma caixa, porque as crianças têm fome e o cão quer água.  
  A vida não para se eu vou ao médico, se eu tenho uma dor e grito, a vida não me espera atravessar porque vou a um velório, porque quem amo também morre. A vida não para para ela mesma.
  Mas, às vezes, a vida olha da janela do seu carro e abre uma passagem por minutos, para uma travessia .

  Na rua que me salva das perguntas, a vida não para para eu chorar na esquina enquanto toca Engenheiros na playlist da caminhada, a vida não para pelos presos políticos, imigrantes de países em guerra, com a minha voz embargada, não para porque eu tenho um peso insuportável nas costas e preciso atravessar.
  A vida é a rua, sempre a mesma, mas cada dia uma. É concreta e abstrata, é geladeira e duas crianças, um cão e a máquina de lavar. A vida não espera a vida, a vida acontece, enquanto não chamamos pelo nome aquilo que também é vida. As crianças entraram no carro, o caminhão foi fechado e eu voltei para casa, depois de atravessar alguns sinais. Eu saio da rua e ela continua, chamo a vida de espera e ela continua sendo vida.


2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 26 de abril de 2018

Querida Amanda,

A rua, hummm, sabe, Amanda, você hoje migrou meus pensamentos para um poema de priscas eras da minha já longínqua mocidade, do Vinícius de Moraes. São simbióticos, sincronizados, muito bonito mesmo seu texto, apaixonante. Para você, Vinícius:

RUA DA AMARGURA (Vinícius de Moraes) Rio de Janeiro , 1933

A minha rua é longa e silenciosa como um caminho que foge
E tem casas baixas que ficam me espiando de noite
Quando a minha angústia passa olhando o alto.
A minha rua tem avenidas escuras e feias
De onde saem papéis velhos correndo com medo do vento
E gemidos de pessoas que estão eternamente à morte.
A minha rua tem gatos que não fogem e cães que não ladram
Tem árvores grandes que tremem na noite silente
Fugindo as grandes sombras dos pés aterrados.
A minha rua é soturna...
Na capela da igreja há sempre uma voz que murmura louvemos
Sozinha e prostrada diante da imagem
Sem medo das costas que a vaga penumbra apunhala.

A minha rua tem um lampião apagado
Na frente da casa onde a filha matou o pai
Porque não queria ser dele.
No escuro da casa só brilha uma chapa gritando quarenta.

A minha rua é a expiação de grandes pecados
De homens ferozes perdendo meninas pequenas
De meninas pequenas levando ventres inchados
De ventres inchados que vão perder meninas pequenas.
É a rua da gata louca que mia buscando os filhinhos nas portas das casas.

É a impossibilidade de fuga diante da vida
É o pecado e a desolação do pecado
É a aceitação da tragédia e a indiferença ao degredo
Como negação do aniquilamento.

É uma rua como tantas outras
Com o mesmo ar feliz de dia e o mesmo desencontro de noite.
É a rua por onde eu passo a minha angústia
Ouvindo os ruídos subterrâneos como ecos de prazeres inacabados.
É a longa rua que me leva ao horror do meu quarto
Pelo desejo de fugir à sua murmuração tenebrosa
Que me leva à solidão gelada do meu quarto...

Rua da amargura...

Um abraço!
Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 26 de abril de 2018

Mas que beleza, Paulo!
Acho até que eu conhecia alguns versos, mas não me lembro de ter lido o poema inteiro antes. É lindo mesmo! E que honra a sua leitura do texto tê-la remetido à Rua de Vinícius. Muito obrigada por tê-lo partilhado...obrigada mesmo, gostei imensamente.
Abraços e ótimo final de semana