sábado, 28 de abril de 2018

Fracamente radioativa na fonte

  - Uma água sem gás, por favor.
  - Não. Sem Gelo e sem limão.
  - Sim. Um canudo, se puder.
  Tenho sentido sede. Muita. Mais do que fome, sono ou pressa. Tenho sentido sede, mesmo quando estou com um copo de água nas mãos, mesmo quando estou parada em frente a um filtro de água, com o copo nos lábios e a água entrando pela garganta. Eu estou com sede enquanto tomo banho, enquanto escovo os dentes, enquanto dou braçadas na piscina e, sem querer, engulo um pouco de água na virada que ainda não aprendi a executar como gostaria.
  Enquanto ouço as vozes do trabalho e transcrevo, vez ou outra, escrevo água, às vezes a palavra é digitada pela metade: digito as letras "a" e "g" e  apago rapidamente, como se um incêndio pudesse surgir dali. Sinto todos os meus espaços internos preenchidos somente pela falta, ausência profunda de um líquido que nunca me satisfaz. Quando eu me olho no espelho, eu só consigo olhar para os meu lábios ressequidos. Estou com uma sede secular.

  Eu tenho sede imediatamente ao acordar, nem do despertador eu tenho precisado, a sede me sacode e me expulsa da cama. A corrida da manhã é uma escalada imaginária rumo à fonte, eu subo as escadas do prédio, depois dos quilômetros terminados, sonhando com a água escorrendo pelos meus lábios, queixo e colo. Nas festas, nos almoços e jantares eu seguro mais o copo do que os talheres e se suspeito que o meu copo vai esvaziar com um gole, encho-o mais, para deixar sempre um resto de água, caso eu precise.
  Eu tenho sede antes de dormir. Tenho sede, imaginando se sonharei com desertos, labaredas quentes e vermelhas ou alaranjadas. Sede ao segurar os bebês, sede ao alimentar os cães, ao desviar dos carros, ao pagar as contas, ao chorar sem saber o porquê, ao ser feliz com razão indeterminada, ao mandar emails, eu tenho sede; quando eu amo e sou amada eu também tenho sede.
  Tenho sentido sede. Inesgotável sensação de secura.

  Pão de queijo eu não quero, café eu não quero, brigadeiro eu não quero, Coca-Cola eu nunca quis, quero água urgente, água no copo, na garrafa que carrego para todos os lados, com canudo ou sem.
  Eu já diminuí o consumo de sal, nunca mais usei os saleiros, cortei o açúcar pela metade nas receitas,  evito as sobremesas, mas a sede não passa, não me abandona, ao contrário, só me consome mais a cada copo tragado. Morrer de sede não é mais uma hipérbole, como meu pai gostava de apontar quando eu usava a expressão, morrer de sede tem parecido uma possibilidade cada vez mais iminente.
  Tenho sentido sede. Demasiada e, talvez, mortal.

  Caminho como se fosse a algum lugar urgente, ando depressa demais, desesperada demais, aflita e ofegante demais, para lugar nenhum. Ando irritada, ando com passos menos leves do que em outros dias e tenho evitado ouvir os sons da rua, porque todos eles me parecem áridos demais.
  Ouço muita música, quase o tempo todo, quando não estou fazendo um trabalho, e penso na minha sede remota, sede ancestral, sede que parece adquirida no útero, embora eu tenha evidências de que não seja.
  Tenho sentido sede. Inadiável desejo de líquido.

  O cheiro forte de álcool às oito da manhã, quando ele se vira para o lado e despeja outro gole na boca. A garrafa de plástico transparente, cheia de líquido incolor, que não é água, porque exala o odor inconfundível. Ele toma até esvaziá-la e volta a se deitar. Não me assusta, não me surpreende, porque há meses eu tenho acompanhado seus gestos, rotinas, existência e sede.
  Os dedos dele enegrecidos pelo fogo e pelas pedras consumidas nas madrugadas. Sua vida frágil, vulnerabilizada pela sua condição interminável de anestesia. As pedras, o fogo, o álcool e a sua sede igual a minha. Há uma semana não o vejo mais e, por isso, tenho sentido sede. Inexplicável secura.

  Eu tenho sentido sede desde o incêndio em frente ao banco, desde que as sacolas - miseráveis posses do homem de dedos queimados -  derreteram, os cobertores queimaram, os papéis da sua carroça foram absolutamente consumidos, junto com a carroça. Eu tenho sentido sede desde que colocaram fim ao lar possível do homem de quem nunca mataram a sede.
  O cheiro de álcool, as pedras que ele queima, os seus gritos durante os pesadelos, as suas práticas domésticas aos olhos públicos e a sua nudez fartamente revelada que agridem a vizinhança vigorosamente alimentada e ignorante das sedes.
  Eu tenho sentido sede. Profunda e despudorada sede.

  Ontem, ao passar pelo  antigo lar do homem, precisei não ter música nem água, dispensei todos os recursos que pudessem me insensibilizar, para sentir o cheiro dele, ver a humanidade que eu me recuso, às vezes. Os vidros, a pintura, o painel da agência financeira já foram prontamente recuperados. Mas um lar foi completamente aniquilado; nenhum vestígio da existência que eu reconheço. Não sei se ele sentia o cheiro de grama da praça em frente ao banco - estavam cortando a grama e eu senti - não sei se na vida dele cabe o cheiro de grama.
  A música é o meu álcool, a minha pedra longamente consumida; a água é a minha mais profunda escassez, enquanto afogo. Fracamente radioativa na fonte, diz o rótulo da água que acabo de beber. Eu também estou fracamente radioativa na fonte, desde que dormir sob a lua não é mais possível nesta cidade.
  Há sedes de toda ordem; para a minha e a do homem eles não oferecem água. No deserto que atravessamos jogam combustível e ateiam fogo. Que cidade é esta que ninguém mais tem vergonha de negar um copo com água a dois pedintes? Uma cidade fortemente ódioativa esta.



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