terça-feira, 10 de abril de 2018

O dia cinco é pão e poema

  Todo dia cinco quando sai o pagamento, ela separa a parte dele: sabonetes, cigarros, chocolates e advogado. Todo dia cinco ela planeja a visita do mês e tem esperança de que seja a última nessas condições. Ela já não é jovem, mas talvez mais do que aparenta, fez uma cirurgia recente na coluna e anda com dificuldade, chega ao trabalho antes das seis, porque escuto a torneira aberta às seis em ponto, mas todo dia cinco ela parece menos triste e com mais vitalidade. Sorri mais,  fala mais palavras ao telefone e comenta sobre o clima, enquanto eu abro o portão. Todo dia cinco ela tem a voz mais suave, os olhos menos duros e o sonho de que seus presentes abracem seu menino todos os dias do mês até o próximo dia cinco.

  Sei dela pelas conversas ao telefone debaixo da minha janela, antes das sete: quatro netos; mais dois filhos, além daquele a quem ela visita; igreja duas vezes por semana, hinos religiosos enquanto trabalha, dor nas costas, mãos ressecadas, dificuldade para marcar consultas com o ortopedista no posto do bairro - tinha que ter feito uma avaliação pós-cirurgia em dezembro, mas até hoje não conseguiu ser atendida -  e um marido que mudou-se há um ano para uma cidade vizinha para trabalhar em um sítio, quer se mudar para lá quando aposentar.
- É um lugar tranquilo, minha filha, tem que ver! Todo mundo conhece todo mundo, sabe?
- Sei.

  Pelo telefone eu sei, sem querer, que ele já está há quatro anos e talvez fique mais seis e que desde que ele perdeu a liberdade, ela não comemora o próprio aniversário, não faz nenhum almoço especial de natal nem de páscoa, na última festa de ressurreição ela iria para casa de uma irmã. Não sei se foi, mas prometeu debaixo da minha janela que iria, mas não queria fazer nada especial.
- Perdeu a graça.
  Semana passada, no dia cinco, ligou para alguém e encomendou um bolo, com recheio de baba de moça, achei que talvez ela desistisse de esperar pela liberdade do filho para retomar as festividades, mas ela pediu duas velas uma com o número dois e a outra com o seis e um confeito simples.
- Porque eles furam o bolo na entrada.
  A própria vida ela não comemora mais, os natais, as ressurreições, réveillons,  mas na dele ela insiste. Ele é o seu assunto mais recorrente nas ligações, o advogado e a irmã os interlocutores diários.

  A reclusão dele é o calendário dela: dia da visita, dia da audiência, dia da saída temporária. É também a sua linha do tempo: o antes dele ser preso e o depois do dia em que ele foi preso. Não sei de crime, só sobre a pena que ela cumpre em regime dolorosamente semiaberto.
  Não tem gostado mais de assistir aos desfiles de escola de samba pela televisão, não vai mais com o marido à igreja aos finais de semana - nem moram mais na mesma cidade - perdeu alguns amigos, quase já não fala mais em bênçãos, já não chora mais quando fala com a irmã ao telefone e é obcecada com a chamada do advogado ao celular, atende antes do terceiro toque. Sua relação com o mundo passa sempre por uma cela, por grades, disciplina, horários, dias marcados e burocracias que ela tem aprendido. Quem traduz para ela o novo mundo é o advogado, a quem eu não conheço, mas parece ter muita paciência nas explicações.

  No dia cinco, quando sai o pagamento, ela renova suas esperanças com os planos pequenos de investimento na casa, quitação das parcelas de algumas dívidas e cumprimento do seu acordo com o homem que abrirá janelas, portas e horizontes para seu filho, temporariamente, em degredo. Todo dia cinco eu a vejo, depois do almoço, quando já retirou o pagamento, subindo a rua com mais coragem, disposta à luta, andando com dificuldade e insegurança como um lutador com o calção folgado demais. Ela é peso pena e sobe ao ringue para lutar contra um adversário peso pesado; resistente e dura, cai nas cordas e adia muito a queda, o rosto na lona.
  Todo dia cinco ela descasca uma laranja, uma banana ou algum doce que oferecem para sua sobremesa e olha tão profundamente para o céu, que chegam a parecer azuis os olhos castanhos dela.  Acho que ela tem algum encontro com o que é, ainda, invisível para mim.

  Tenho sentido pela sua espera; tenho pensado se não estamos sentadas na mesma sala, dividindo um banco longo e interminável, enquanto uma recepcionista levanta a cabeça a cada vinte minutos e repete:
- Só mais um minutinho, viu?
  Não fazemos festa, porque esperamos alguém chegar; não comemos peixe, não passamos um batom, não enfeitamos árvores de natal, não comemoramos os gols que os camisas amarelas conseguem fazer. Perdeu a graça.
  Ela tem um dia de sonhos e outros vinte e nove de lutas; guarda as festas, feriados e nem sei se ainda canta os hinos religiosos com a devoção das primeiras serenatas; embola frases, esquece tons. O dia cinco alimenta a sua sobrevivência material e subjetiva. O dia cinco é seu pão e poema.

  A sua luta é a espera; talvez chegue, talvez nunca. Imaculada o nome; imaculada a sua luta. Todo dia cinco. O sabão resseca mais as suas mãos, a mangueira estragada a obriga a carregar baldes,  o advogado liga e fala sobre algum recurso negado. Há lutas que ultrapassam os rounds planejados.
   Não terá a sua liberdade no próximo dia cinco; vai comprar chocolates, cigarros e sabonetes por mais um mês. Eu ouvi tristeza, debaixo da minha janela, mas quando saí, seu rosto parecia ainda mais seco do que ontem.
- Vai com Deus, ô menina.
  Ela ainda acredita em milagres, ela ainda vê deus.
  A esperança dos outros têm  asas ainda mais delicadas do que a nossa. Queria dizer que ficará tudo bem, mas não fiz Direito nem sou crente em muita coisa. Imaculada é seu nome, sem manchas é a espera dela.




2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 11 de abril de 2018

Prezada Amanda
Escritora do manancial de emoções urbanas

Em carta atribuída a Paulo (de Tarso) aos Hebreus (Paulo era turco-romano-hebreu tudo junto e misturado) ele escreve:

"A fé é o fundamento da esperança, é uma certeza a respeito do que não se vê." (Hebreus, 11 - 1).

Saul nascera na mesma cidade a qual anos antes Marco Antônio conheceu e se entregou à Cleópatra. Só isto daí já seria um dado a ser colocado em letras garrafais no currículo. Mas foi caindo do cavalo que se tornou Paulo ... e assim construiu os alicerces da Física Quântica.

A fé é uma certeza do que não se vê e mais adiante escreve que "as coisas visíveis se originaram do invisível."

Esta mulher que sofre vive de ver o visível no visível, movida pela fé. Apesar de estar limitada a uma data, um dia apenas num mar revolto de dias, este é o dia que vê o invisível, o impossível, o intangível.

Bem, Amanda, um abraço

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 12 de abril de um angustiante 2018

Querido Paulo,
"ver o visível no invisível" é uma profissão de fé; nobre, corajosa e inspiradora. Que seja somente no dia cinco, mas que alimente-a nos outros dias, está é a minha prece. "Fundamento da esperança..." que beleza isto!

Obrigada pela partilha sempre tão generosa.
Abraços,
Amanda