segunda-feira, 16 de abril de 2018

Tudo é desordem, depois da porta da entrada

   Os quadros estão tortos, os móveis cheios de poeira e a lâmpada do corredor está queimada, desde não sei quando, todas as vezes em que fui lá nos últimos meses ela diz, enquanto passamos por ele:
- Queimou. Tenho que trocar.
  Não diz quando nem o porquê de ainda estar queimada, interrompe o assunto para explicar o escuro e logo continua de onde paramos, com a mesma rapidez de alguém que coloca a mão no interruptor, de repente, clareia. Devia me oferecer para trocar, trazer uma nova lâmpada da próxima vez, mas nunca voltamos ao assunto. Eles são muitos e diversos e o interesse dela não se limita à casa. Eu é quem estou atada à solidez das coisas, quando chego; ela é etérea. Suas mãos atravessam as cortinas, seu corpo de ossos largos e pele fina acumulada levita sobre o piso, seus olhos não se detêm aos limites materiais.
   Passamos. Pelo corredor e a sua escuridão, pelos assuntos que ela recorta e une com a habilidade de uma costureira; o que não parecia ter conexão, de repente, ela emenda magistralmente. Passamos. Inevitavelmente pelas vidas, muitas; uma da outra agora, não há garantias de duração, mas de passagem sim.

  Ela fala sobre muitas coisas, algumas eu acho que entendo bem, outras eu só ouço com curiosidade e respeito, porque creio que entenderei algum dia, talvez ela nem esteja mais aqui e numa tarde, no meio do trabalho, uma compreensão pouse sobre minha agenda. Ela fala, eu aceito como regalos preciosos que valerão muito numa necessidade. Sou carregada de entendimentos para o futuro, ela compreende depois de passados. 
  Depois da porta de entrada, tudo é um caos, no apartamento,  coisas antigas acumuladas, paredes com marcas de infiltrações passadas, móveis que mudaram de lugar e borrões de tempo. Mas ela organiza um mundo, quando fala, e isso é o bastante.
  Construímos. Muros, paredes, pontes, relações, carreiras, famílias e quase todas fogem de um projeto esboçado muito antes das chuvas, do trânsito, das perdas, das direções tomadas. Construímos para não saber o que será, no final; colocamos porta-retratos, luminárias, souvenirs de viagens que não são nossas e, um dia, tudo é uma confusão de lembranças que não fazemos ideia sobre que memórias evocam.

 Eu sento numa das cadeiras da cozinha, enquanto ela passa o café, esse é o ritual de sempre. Enquanto ela procura o filtro, tento lembrar do dia em que eu comecei a gostar de tomar café. Não me lembro. Ela está silenciosa agora. É sempre assim, quando se concentra, eu observo. Volto a pensar sobre o café na minha vida, talvez nem goste mesmo do sabor, talvez o café seja a minha abertura para o mundo. Tomar café me levou aos outros; tomar café me trouxe os outros.
  Ela coloca as xícaras sobre a mesa e eu me lembro de gostar de xícaras desde pequena, um conjunto de xícaras amarelas de plástico foi o meu brinquedo favorito por muitos anos. O café é finalmente a minha realização depois das xícaras amarelas vazias de líquido, transbordantes de esperanças. Aprendi a tomar café antes dele chegar à minha xícara.

  Na pia da cozinha acumulam pacotes de biscoitos, açúcar, fubá, café, sabão em pó e argila e algumas louças que devem estar empilhadas no escorredor desde o almoço. Ela pega o pacote de biscoitos, entre o pacote de argila e o fubá e o coloca na mesa, tira um pequeno prato do escorredor, sem derrubar nada que estava por cima, e espalha os biscoitos sobre ele. Retira o pacote de açúcar, que estava entre o sabão em pó e argila e o despeja dentro do açucareiro vazio, sobre a mesa; com a mesma destreza, abre o pacote de café, entre o sabão em pó e a parede e enfia uma colher três vezes, sem derrubar nenhum cisco visível na pia.
  A cozinha é uma completa desarrumação, mas as mãos dela encontram caminhos suaves que ultrapassam os obstáculos da desarmonia.
  Empunhamos. A colher com a exatidão, que ela precisa, até chegar à água no fogão, nossos valores e crenças com a energia para ultrapassar dias difíceis e escondemos a bagunça ao redor e a dor que é resistir.

  Com o café pronto, ela se senta em frente a mim e os seus olhos são mais fortes e acolhedores do que a xícara de café. Com tão pouca gente é possível olhar e ser olhada sem pesos, sem desculpas, com a nudez confortável da intimidade de um amor que conhece os defeitos do amado e ainda assim não  foge, não se muda, não viaja para longe, não inventa uma gripe ou um compromisso de um familiar que não existe.
  Nos revelamos. No café que preparamos, nas xícaras que amamos, nas esperas que confiamos, nos olhares que aceitamos sem nos sentirmos violadas.

  Depois do café, seguimos para a sala e atravesso o corredor que, há pouco, parecia mais escuro. Ela ilumina mais uma vez:
- Queimou. Tenho que trocar.
  Começo uma frase:
- Se quiser...
  Mas ela não deixa que eu termine. Nos sentamos no sofá que fica em frente a uma janela, quase sempre fechada, porque a luz do sol agride suas retinas muito sensíveis, mas que ela não troca de lugar, porque assiste às estrelas nas noites que elas estão visíveis no seu céu.
  A sala dela é um amontoado de histórias em preto e branco, bibelôs de porcelana, revistas e discos antigos, mantas de crochê e almofadas de retalhos.  
  Apoiamos. Nossas cabeças nos ombros mais frágeis que os nossos, nossas mãos em mãos mais frias que as nossas, nossas dores ordinárias nas cicatrizes mais profundas de alguém que só quer companhia para o café.

  Preciso ir embora da desarrumação que é o seu entorno e da ordem delicada e precisa que são as suas mãos, olhos e palavras. Despeço-me do café  e da lucidez no meio de um cômodo em desvario.
  Buscamos. Nos curar do passado, guardar experiências para o futuro e, sobretudo, vivermos cada minuto que ainda temos na sua sala.
  Passamos. Pelos corredores sem luz, com a coragem de quem está certo que a claridade virá.
Mas também duramos, naquilo que amamos fazer algum dia e no tempo que nos dedicamos a só passá-lo com alguém, cujos olhos nos atravessam sem doer.
  Minha casa ordenada, meu desalinho ao fazer café e derramar metade do pó na pia. Ela me ensina o lugar das desarrumações, ela não esconde sua lâmpada queimada, suas paredes borradas, sua pia entulhada.
  Tudo é desordem, depois da porta da entrada, mas a casa continuará aberta, sem recusas, sem retoques; isto é melhor do que ter todas as luzes sempre acesas.
Tudo é desordem, depois da porta da saída, mas é possível encontrar caminhos menos tortuosos de levar o pó de café até à água no fogão.




2 comentários:

Kellen disse...

Companheira dos meus melhores cafés da manhã.

Amanda Machado disse...

Que prestígio! Caneca vermelha esmaltada? Bom dia...noite