domingo, 22 de abril de 2018

Os leões não devem ser calados

   Para secar os pingos excessivos nos vidros, espelhos, azulejos do banheiro e cozinha desses dias úmidos de outono, abrir as janelas e deixar sol e vento entrarem nos cômodos, nas frestas, entre os armários e as prateleiras, sobre o guarda-roupa, a fruteira e as toalhas de banho.      
  Para não deixar as gotas de melancolia se instalarem na face, abrir passagem para que elas escorram e sequem no tempo do ciclo das lágrimas. Levar o rosto à rua, dar a outra face à vulnerabilidade, não se envergonhar de se liquefazer nos dias que não são de riso. Para não ter urgência na passagem de estado, me lembrar do sólido, quando eu estiver líquida, me lembrar do gasoso, quando eu for sólida.

  Para suportar os dias frios, vazios de calor afetuoso, café com leite quente em copo de vidro transparente. A beleza para os olhos e um estômago aquecido, também restauram a alma das rachaduras de dilatação. Tomar um ônibus diferente, enxergar ternuras cotidianas como a avó levando a neta para a escola, o motorista freando o carro para o cachorro atravessar sem sustos, a chuva caindo lenta sobre as pétalas.

  Para libertar os leões que rugem dentro, deixa-los serem estridentes o quanto quiserem, bravos o quanto suas naturezas requisitarem, raivosos de não estarem nas savanas e, depois de cansados, adormecerem lentamente, abrindo espaços para os outros sons menos enfurecidos. Não domesticar, não  silenciar, não  romper, não limitar; o leão domesticado descansa com suas patas apoiadas na passividade. Os leões não devem ser calados nem contidos, seus rugidos nos deixam despertos para a vida.

  Para aquecer ou esfriar a mornidão dos dias de retorno longo de algum caminho equivocado, um palito de fósforo aceso ou um pé de cânfora num vaso da sala. Um prato de sopa quente ou uma tulipa de fermentado gelado, numa mesa com toalha mansa e cadeira estável.
  Não culpar os sapatos, a poeira nos olhos ou a imprecisão dos destinos. Voltar, voltar sempre que não encontrar a saída; voltar sem prática, voltar cansada, voltar com a esperança tão maltrapilha quanto a barra da calça muito comprida. Voltar para o quente ou para frio, mas ultrapassar os dias temperados.

  Para distrair a frustração dos números que só aumentam no tempo e na distância, enquanto um furacão não chega e nos coloca num mesmo ponto, de uma vez, frente a frente - inescapáveis. Enviar mensagens pelos sinalizadores, ao menos, para sabermos que ainda estamos no mesmo mundo. Enfrentar silêncios, não me acostumar com os vazios, cantar que as presenças não são visíveis e imóveis e que a liberdade é um começo de amor e não a expansão dele.
  Para espantar o ócio da espera, construir outros futuros, sonhar sozinha e pedir ao vizinho que receba as encomendas, as visitas, os cobradores quando não estiver em casa. Deixar uma chave com ele, para o caso de uma demora, para que não percam a viagem as coisas que desejam me encontrar.

  Para me curar da abstinência diária de não beber os seus líquidos, um passeio pelas ruas; flaneur longe dos vícios, mas obcecada pelo dia da volta. Mais um dia de sobriedade involuntária.
  Para não criar novos vícios, não colecionar garrafas em casa, passar do outro lado da rua para evitar os bares, não aceitar um copo na comemoração. Lembrar da última ressaca e da promessa feita enquanto a cabeça ainda rodava.

  Para não me curvar e encolher com as notícias sobre o curso do país, não simular outra nacionalidade. Procurar um poema novo por dia, uma música, uma história antiga contada por uma amiga latino-americana, brasileira, vizinha de desolação e fé. Da nossa tribo, inventar rituais para deuses imaginários e pedir que nos libertem do conformismo e da desesperança; criar um hino que resgate nossas humanidades da areia movediça, que a cada hora consome mais um pedaço delas.
  Para não molhar o final de domingo, que já é demasiadamente úmido,  olhar a lua e as suas infinitas matizes, enquanto ela se move lentamente, ouvir os leões rugirem com menos desespero, mas com as gargantas ainda firmes.
  Para não dormir magoada com os sonhos que não puderam se cumprir, perdoar o destino que não sustentou os balões por muito tempo no ar e soprar, com toda a força dos pulmões, novos ares para outros balões; que serão soltos, de novo, numa noite de sono profundo.


 

2 comentários:

Kellen disse...

Um combustível pra semana

Amanda Machado disse...

Sigamos, entonces...avante!