domingo, 20 de maio de 2018

Algum lugar em que se esteja salva

  Eu deveria estar segura na sessão de cinema das seis horas, antes e depois do filme. Eu só deveria sentir o impacto das cenas, da atuação dos atores, da trilha sonora, dos diálogos que falassem comigo e dos espaços vazios entre os bancos e as fileiras com outros espectadores como eu. Eu deveria poder não olhar para as saídas de emergência, quando um barulho inesperado na tela fizesse minhas pernas tremerem, eu deveria não ter que olhar para o relógio, para as notificações no celular, temendo ser tarde ou cedo demais para alguma coisa e nem para a cadeira ao lado, quando alguém começasse um movimento estranho. Eu só deveria estar segura e completamente entregue a um filme da sessão das seis.
   Eu não deveria me sentir ameaçada no elevador do prédio do dentista. A única falha possível que eu deveria temer é o das engrenagens da máquina, ainda assim, eu  respiraria confortável, acreditando na competência e responsabilidade dos humanos com outros humanos.

  Eu deveria  estar segura na China, na Índia, na Coreia do Norte, nas falésias do nordeste brasileiro, nas montanhas do Turcomenistão. Eu deveria comprar a minha passagem, escolher o caminho mais bonito, não o menor ou com estatísticas mais favoráveis, levar uma garrafa d'água, um par de tênis com amortecedores, um documento com foto, caso eu precise provar a minha existência em registro, um dicionário,  uma caneta e um caderno de anotações, caso eu precise me comunicar para dentro ou para fora de mim.  Eu deveria arrumar minha mochila e não colocar um guarda-chuva, para não pesar, mas me lembrar do band-aid, do filtro solar, do relaxante muscular, do origami de pássaro da sorte, em vermelho, que eu levo a qualquer lugar, para dar mais sorte a ele.
  Eu deveria entrar num avião e me sentir segura na minha poltrona reclinável, que eu manteria ereta para não diminuir o espaço do passageiro atrás e só suspeitar, no máximo, de uma queda livre, morte sem dor; o que não tiraria o meu sono.

  Eu deveria me sentir segura quando saio para correr às cinco da manhã e o silêncio da cidade abriga o meu silêncio. Nós duas, eu e a cidade, mancomunadas em mantermos os nossos mistérios na madrugada, somente sob a neblina espessa que começou em maio, sem as  máscaras, sem as mentiras das pessoas que moram nela.
  Eu deveria  só me emocionar com os raios de sol, entrando pelas varandas, banhando os gatos, reforçando os verdes das plantas, iluminando as frestas, projetando sombras bailarinas de crianças nos muros,  indo à escola pela manhã. Eu não deveria temer o silêncio, o vazio e a nebulosidade no asfalto. Eu só deveria me perguntar se os alongamentos foram suficientes e se os meus joelhos não me odeiam por requisitá-los tanto.

  Eu deveria poder ir a um restaurante, escolher uma mesa perto da janela, para também me alimentar da paisagem,  e examinar calmamente o cardápio. Eu deveria me sentir segura se pedisse frutos do mar, porque não sou alérgica a frutos do mar. Eu deveria  poder pedir uma entrada com camarões, um prato principal com lagosta e de guarnição um arroz com mexilhões e não temer nenhuma intoxicação, no máximo, um pequeno desconforto, caso me servisse com mais comida do que meu estômago esperasse. Eu deveria me sentir segura, se começasse uma discussão entre um casal, na mesa vizinha, se o homem humilhasse a sua companhia eu me levantasse e oferecesse a minha cadeira a ela. Eu deveria me sentir segura de oferecer segurança a ela e ela deveria se sentir segura em aceitar a minha segurança junto a dela.
  Eu deveria me sentir segura em pedir a conta, no restaurante, reclamar por uma cobrança indevida e não ser desacreditada, mal compreendida, depois, não suportar o doce da sobremesa parado na minha garganta. Eu deveria me sentir segura com a minha segurança.

  Eu deveria poder correr perigos e, ainda assim, me sentir segura. Eu deveria desafiar, resistir,  discordar, criticar, contrariar, não desejar ser aceitável e, ainda assim, não perder a segurança.
Eu deveria poder dormir em algum lugar público, porque eu perdi o cartão e não tenho dinheiro para o hotel. E mesmo cansada, relaxada na calçada, estar segura sob um céu brilhante de estrelas.
   Eu deveria me sentir em segurança quando um desconhecido me perguntasse as horas, um endereço anotado no papel, meu nome ou sobre o melhor sorvete da cidade. Eu deveria poder parar e conversar com um desconhecido sem suspeitas, talvez apenas com a possibilidade dele ser um chato e eu ter que interromper a conversa com uma desculpa improvisada.  

  Eu deveria me sentir segura, mesmo sabendo ser impossível estar segura. Eu deveria ter um tipo de insegurança completamente tratável, educável, subordinável e unicamente individual.
    Eu deveria estar segura em qualquer dia de chuva, sem nenhuma telha, telhado, marquise ou capa de plástico transparente, eu deveria somente ter receio dos raios e enchentes. Eu deveria poder pular em poças d'água com a cidade deserta, à noite, depois que eu saísse do cinema ou do restaurante, deveria poder, enquanto pulo, sorrir a estranhos e me conectar com desconhecidas em desamparo eventual.
  Eu deveria estar segura nas minhas inseguranças e não da insegurança que é nunca estar segura em absolutamente lugar algum. Eu deveria estar segura quando um sim, quando um não, quando eu muda.

  Os meus pensamentos deveriam ser os únicos lugares vulneráveis no mundo; não são. Eu não deveria estar a salvo somente dos meus pensamentos. Mas são os únicos que ainda me oferecem abrigo quando todo o mundo é um lugar em que nunca se está segura.
  Eu deveria conhecer algum lugar em que eu esteja sempre salva; esse lugar não existe hoje.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Glaciais, 21 de maio de 2018

Querida Amanda,

Texto de elevada e fina ironia para os que nele se enxergam. Há aqui o difícil uso do futuro do pretérito do indicativo, colocando a personagem diante de fatos que poderiam ter acontecido posteriormente a situações passadas. Expressando incertezas, surpresas e indignação, confere um caráter mais contido, preso às dependências que criou dentro da sua prisão de afirmações auto-defensivas, destrutivas e inúteis.

O climax se dá no final quando determina que não existe nenhum lugar onde pudesse estar a salvo. Deveria (opa) ter conhecido o seu futuro do indicativo, é lá que estão as coisas que deseja, que fazem e dão sentido à vida, mas para isto terá que desatar nós terríveis no novelo da sua vida.

Parabéns pelo texto - inteligente e "cutucador" de pessoas que preferem dormir.

Um abraço!

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Glaciais (rs), 21 de maio de 2018 (o fatídico ano que começou em 2016)

Querido Paulo,
tudo tão estranho, frio (não o clima, porque deste não reclamo), perspectivas tão precárias, quando não devastadoras, vozes violentas...para onde ir?

Para aqui mesmo, para as conversas de final do dia com um interlocutor dos melhores! O pretérito é ainda o tempo possível, o futuro (qualquer um deles) é somente um "móbile solto no furacão", como canta o Moska...
Obrigada pela presença e diálogo! Ótima semana
Abraços,
Amanda