terça-feira, 15 de maio de 2018

O filme do Fellini não tem final

   A infância não acaba; a criança é quem parte. Os joelhos esfolados, os hematomas nas canelas, o dedo do pé com um curativo recorrente, sandália de borracha porque no tênis não cabe o dedo com esparadrapo, repreensão carinhosa da mãe, laranja descascada pelo pai, simulação de banho no inverno com chuveiro aberto, tédio, dia longo, final de semana curto, bala de caramelo grudada no dente, pular o muro para sair da escola e, arrependida, pular o muro para voltar à escola, não tem mais. A infância dura ainda, afastada, no outro tempo; a criança foi-se.
  Os irmãos não vão embora, não crescem, nunca são adultos; o fogo das iras infantis se arrefecem; é só.

  Os planos fracassam; os sonhos não. Eles seguem viagem, perdidos do dono, para sobrevoar outras cabeças. Os sonhos abandonados são ondas sonoras que tocam outras vidas a quilômetros de distância e a mesma onda que leva, pode trazer de volta. Os sonhos não adormecem, visitam outras camas, retomam o fôlego e chegam, num domingo à noite, sedentos da casa antiga, saudosos do dono quase desiludido.
  Os planos morrem, são velados por muito ou pouco tempo, são enterrados em cova profunda num caixão de madeira. Os sonhos resistem a tudo: à tristeza, à saudade, ao atropelamento por um caminhão de cimento, depois de uma manobra no trânsito tumultuado, ao tempo, ao clima, à solidão da terra estrangeira. Os planos são frágeis não suportam quase nada, escorrem na chuva imprevista, derretem sob um sol inesperado, morrem por hipotermia, catapora, coração quebrado.

  Os casamentos acabam, trinta anos depois, uma década, um ano, na porta da igreja; o amor não acaba. O amor muda de lugar; não espera pelas férias, pelo filho, pela cura, pela indenização do trabalho. O casamento aguarda, burocrático, sentado à porta pela melhor hora, enquanto o amor já foi embora.
  Os casamentos precisam de testemunhas, o amor evita outros olhos que não seja os dele próprio. As bodas têm promessas, vestidos bordados, grinaldas floridas, ternos, gravatas de cetim e sapatos engraxados. O amor é bem roto, maltrapilho, amassado e chega descalço. Os casamentos têm bolos e álbum de fotografias; o amor tem pão com maionese de madrugada e nenhuma foto em que caiba a lembrança.
  Os casamentos são intercâmbios ao exterior; com festa de despedida, muitas fotos e souvenirs na volta. O amor é final de semana na casa de vó, não dá para colocar no currículo, para narrar aventuras em outras línguas, mas é o que é para sempre.

  Os caminhões de lixo não levam tudo; a brutalidade sim, arrasta memória, duas cadeiras, a ternura do afeto, um quadro pesado e a cama do gato. Nos sacos pretos de lixo, recostados nos muros brancos, cabem papéis, fotos, metade de um bolo de milho solado, havaianas arrebentadas, uma tampa sem pote, o filtro com a borra do café, laços de um pacote de presente. Os gritos, as asperezas repetidas, sufocam um final de semana em Paraty, três viagens ao exterior, a lembrança de uma tia de cabelos cinza, o calor das mãos, o ombro onde um choro cabia sem nunca afogar.
  Num aterro sanitário, isolado: camisetas rasgadas, panos de prato manchados, pedaços de uma galinha de biscuit  que ficava em cima da mesa, bolachas mofadas e canetas sem tinta e sem tampas. Numa gaveta trancada da memória: as palavras, os poemas, os desenhos nos guardanapos, as flores secas entre páginas e as carícias.

  A casa em que nascemos não pode ser demolida; as histórias ruins que vivemos podem ser redesenhadas. O batente da porta do quintal com as marcas do canivete que marcaram a altura que ganhamos ao longo dos anos, ainda está lá. O basculante com vidros diferentes, em cada troca um acidente, um grito e um vidraceiro que deixava um pouco de massa para brincarmos, também permanece. Os castigos, os abusos, as palavras adoecidas, os olhares atormentados sobre a cabeça podem ser ressignificados, perdoados, soltos num barco de papel com flores e pedidos para a mãe d’água.  
 A casa em que nascemos é a mesma com a qual sonhamos em voltar durante as tormentas, as tempestades, as crises de identidade, existenciais e de idade. Os conflitos que deixaram marcas, podem ser suavizados até quase não existirem, para não sabermos como voltar.

  Os caminhos dos quais nos afastamos não deixam de existir; o medo do início da estrada é que perdido, logo que os dois pés ganham espaço. O visto, o sentido, o ouvido, o tocado há pouco ou há milhares de metros não nos abandonam nem são abandonados. O temido, o afastado, o estranhado, são as incômodas e pequenas pedras, que precisam ser retiradas do sapato, para o caminhante  prosseguir a sua jornada.
  O encontros nunca terminam; o primeiro encontro é que só dura até o primeiro sono. Uma história antiga, um relacionamento duradouro é contornado por sucessivos reencontros, descobertas, afinidades inesperadas. Uma cartela que se completa, termina logo o jogo.

  O filme do Fellini não tem final; o roteiro escrito é que tem um desfecho programado. Os anos não desgastam as cenas que acontecem nele. Se procurar, não tem como não encontrar uma personagem, narrativa, cenário ou figurino que ainda surpreenda, na décima, vigésima ou trigésima exibição.
  Um filme ultrapassa a pretensão do filme; um filme dura muito mais do que os minutos do filme.
Fellini não acaba; os filmes só não passam mais de madrugada, na TV aberta, mas ele ainda está lá, como os sonhos que chegam por ondas sonoras; um dia tocam em alguma casa, em que nunca pretendeu morar.


4 comentários:

Bel disse...

No matter where you at, no worry I’ll be there

Amanda Machado disse...

I Know, sista... I know

Paulo Abreu disse...

Econômico hoje - Estes contos ... atuam na ponta adormecida da memória!

Um abraço

Amanda Machado disse...

Econômico, mas não menos gentil. Abraços, Paulo!