sexta-feira, 25 de maio de 2018

Não abri a porta de pijama

  Fui eu quem dormiu antes do final, fui eu quem quis cortar o cabelo e não gostou; sou eu quem não quero sair da cama antes das oito. Fui eu quem disse que me levantaria e estaria pronta às nove e não estou. O suco amarelo do lado da cama não me anima, a cortina branca, revelando as silhuetas geométricas das construções ao lado não me emociona, o céu azul-desmaiado não me convida a ficar de pé, o pijama rosa já não me incomoda hoje.
  Adio até os menores movimentos, só a respiração passa completamente livre, independente, sem solicitar a carga de energia que eu não quero dispensar.
  O dia seguinte a uma celebração é um dia natimorto; amanhece e acaba sem deixar impressões no calendário. O dia depois de uma espera terminada é um pacote vazio, esquecido no sofá da sala. Não há ninguém que virá reclamar por ele, não há nada a ser aproveitado; é uma prova consistente de fim.    

  Já são quase nove e  ainda estou de rosa, numa cama prateada. Abro a cortina e me sento; algum significado pode entrar pela janela. Tudo calmo, cinza e um pacote vazio no sofá da sala, esperando que eu vá buscá-lo; ainda não vou. No final da rua, a lateral da fachada de um prédio fica mais branca, um homem minúsculo pendurado em uma corda, que balança a cada movimento suave que ele desenvolve, deixa ainda mais branca a minha manhã.
Nenhuma notícia, nenhuma manifestação, nenhum significado passeia pela minha rua; só o homem com a sua lata de tinta branca afasta a ausência completa da  manhã.
  Da minha cama, assisto ao movimento tedioso do pintor de paredes, acompanho seus braços abertos se fecharem para depois, abrirem-se novamente, a rotação dos seus punhos treinados, sua conversa muda com o colega que está do outro lado do prédio, cuja sombra é refletida na parte menos branca da lateral que eu posso ver. Ela também será pintada, todas as marcas de tempo, de intempéries, choques de voos desesperados de pássaros passados, cinzas de queimadas de muitos invernos serão apagadas pelo homem minúsculo, preso a uma corda. O quão seguro ele é, balançando em um assento de madeira, suspenso por uma corda, da qual desconheço origem e data de fabricação?

  Fui eu quem disse que me levantaria cedo, faria o café, trocaria de roupa e esperaria a encomenda que não é para mim. Fui eu quem não tirei os olhos da parede branca, tornado-se ainda mais branca, desde que tirei a cabeça do travesseiro enluarado. O silêncio se assusta com uma chamada que eu atendo, fingindo disposição:
- Sim, já me levantei. Sim, já tomei meu banho. Sim, claro que estou apresentável para abrir a porta.
  Minto três vezes numa conversa curta. Não preciso de muito tempo para simular o que eu planejei ter feito, mas não fiz; meio ilusão, meio desistência.
  O homenzinho e um terço de lateral do prédio a ser pintado. Será que terá uma segunda demão?   Quanto tempo, quanta tinta, quanto trabalho até a parede estar suficientemente branca? Já era, agora será mais. Tinta nova em parede de outros tempos, quantas camadas até apagar antigas histórias. E se eu me levantasse, buscasse um litro de tinta na loja do bairro, quanto tempo até eu esconder as marcas dos meus dias?

  A desolação de não estar no dia certo, ainda que no dia certo não haja tempo de ter certezas sobre o dia. Estar em cima do tapete impede a visão ampliada, esconde o que está debaixo dos pés, por isso que a celebração não está nunca sincronizada com o sentimento; ele é antes ou depois, na hora mesmo é a invenção que ocupa os espaços entre os brindes.
  O homem na parede branca, às vezes para e parece olhar para vizinhança, não me vê, claro, porque está de costas para quem o assiste. O que será que pensa o homem cujo trabalho é apagar marcas, reforçar brancuras? Será que se diverte com a aventura da altura, com o voo contido pelas cordas ou se entedia com a ausência de colorido sob seu nariz? Será que ele assina a sua obra? Oculta marcas que depois só ele pode ver e, se quiser, traduzir para alguém? Será que escreve mensagens, cartas, pedidos, orações, protestos? Fico ainda mais atenta aos seus movimentos, talvez eu descubra suas falas ocultas.

  Adio a troca de roupa, adio o banho, não penteio o cabelo.  Sou eu quem adio a decisão de levar o dia estático a cabo, de decretar o fim do desperdício das horas passadas numa janela, ainda em jejum. Sou eu quem fica completamente concentrada na pintura da fachada de um prédio vizinho, esperando traduzir uma mensagem única. Sou eu quem não se levanta, porque um homem parece se divertir, enquanto realiza o trabalho de ocultar o que eu gostaria de entender. Ele para para o almoço, seu balanço desce até o térreo e eu ainda não tirei o pijama rosa.
  O dia que acabou ontem e me deixou um pacote vazio. O dia que acontece hoje e que parece não ter um nome ou pais que o assumam, quem pintou de branco o meu dia seguinte?

  Os planos são ultrapassados pela urgência que a vida é. Às vezes de não caber nos limites de uma agenda, às vezes de nem chegar a ser qualquer coisa numa agenda, só um sonho atravessando outra página que não a minha. Eu disse que me levantaria antes das oito e não vou, não fui. O pintor voltou do almoço, terminou o trabalho no pedaço da parede e não recomeçou uma nova demão. Então é isto? Vai embora? Leva com ele o balanço com assento de madeira, as cordas firmes que duraram até ao final e a mensagem que eu não consegui ler? Vai voltar para filha (tem ele uma filha que o espera em casa depois do expediente? Eu sempre acho que tem, porque eu esperava pelo meu pai, dormindo no sofá da sala para vê-lo, ao menos uma vez no dia, antes de ir para a cama) e me deixar sem ter o que ver da minha janela; quem disse que ele era responsável pelo meu dia?

  A fachada do prédio não mudou em quase nada, só parece um pouco mais luminosa, recente, sem tanta história. A noite chega e enterra o dia natimorto. A encomenda não chegou e eu não tive que abrir a porta de pijama; ninguém veio.
  Vou até a sala e observo a  irrelevância do pacote vazio em cima do sofá, o dia depois do dia que será lembrado, o dia que será ocultado por uma demão de tinta branca, depois de amanhã. De encomendas que não chegam, de significados que não pousam na janela, de mentiras que se esquecem de acontecer, de planos que desviam da rota, de paredes brancas sem mensagem alguma, sob o pincel de um homem sem uma filha para esperá-lo, acordada em casa, também são feitos os dias. Sou eu quem retira o pacote do sofá e, finalmente, joga-o no lixo. Um dia que começa tarde, ainda pode ser um dia para se escrever uma história.




2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas gerais, 03 de Junho de 19..., oopa opa 2018

Querida Amanda,

Lá trás, num tempo destes que perdi, vi no seus textos a tônica da manifestação da dor e da cura, razão pela qual chegamos a comentar as dores do mundo e as dores dos seus personagens, todos propositadamente anônimos, pois são o leitor, a leitora, enfim, caminha por uma provocação sutil por sobre nós outros.

Quantas mensagens nesta crônica, quanta coisa pode se tirar daqui, da parede da memória, do branco, do homem cuja pulsão da morte o coloca num andaime frágil, no pai ausente.

Como funcionamos por associação para termos ideias, lembrei de "Ninguém escreve ao Coronel" do Garcia Marques, aquela agonia da dor, esperando ... esperando ... preso ao passado, vivendo um não presente sem futuro.

Então é isto. Sei que ainda experimentarei sempre emoções do interior do interior das nossas angústias nas crônicas que transcreve do fundo do seu coração.

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, neste chuvoso e frio 06 de junho de 2018

Querido Paulo,
suas leituras e partilhas tão imbuídas de profundidade, generosidade e gentileza , porque veem a dor e também a cura, são parte importante de cada pequena construção neste blog.

Obrigada sempre e que bom que também "lê" o esforço do mergulho.
Gracias siempre!
Amanda