sábado, 26 de maio de 2018

Uma cabeça

   Meia dúzia de santos de mesmo nome, meia dúzia de um mesmo milagre que não acontecerá seis vezes; talvez um milagre em seis parcelas. Milagre extenso, duradouro, longínquo, mas leve, seguro por doze mãos santas.
   O primeiro dos santos foi uma escolha minha, o último bibelô de uma loja da qual eu gostava muito, que ficava no centro. Era uma loja dessas de artigos variados para presentes, parecia a casa de uma avó colecionadora ou um cenário de loja de filme francês. Não tinha prateleiras com objetos organizados por tamanho ou utilidade, aliás muitos dos objetos nem tinha utilidade muito precisa, não tinha corredores com distâncias regulares, era um labirinto rodeado de inesperados ornamentos; alguns até bastante empoeirados - desses eu gostava mais. Eram cordões indianos coloridos, luminárias chinesas com delicadas aquarelas pintadas nas bordas,  penduricalhos com o olho grego, lenços da Ilha de Java, rendas cearenses, bonecas russas de porcelana, caixinhas de música com bailarinas que lembravam as ilustrações de um livro conhecido na infância, xícaras com asas douradas, pratos com flores pintadas à mão, incensários feitos de pedras, pequenas cascatas em bambus, móbiles de origamis e perto da caixa registradora, entre gatos egípcios de madeira e estátuas longilíneas de gueixas, um santo.

  Vestido com uma roupa marrom, com um terço na cintura, uma ave num dos ombros, outra nas mãos e um cervo, salpicado de manchas brancas, recostado na sua perna direita; um santo pequeníssimo, cheio de detalhes, que levei décadas para descobrir e nunca soube de todos; um santo que eu não sabia que precisava. Na porta da loja um cartaz, avisando que era o último dia do seu funcionamento, fui me despedir do ambiente mais sereno da cidade e levei o São Francisco num papel de seda branco, com um folha de papel celofane transparente e um pequeno ornamento em papel de seda vermelho, que lembrava uma flor, colocado em cima; todos os artigos da loja seguiam esse padrão elegante de embrulho. O primeiro dos seis portadores do milagre grandioso, partilhado ao logo do tempo.

  Os outros todos foram presentes; o segundo chegou para fazer companhia ao primeiro, ao menos foi essa a recomendação do remetente num bilhete que já não tenho mais. Depois, cada um que chegou não sabia do outro e fui aceitando a coincidência de um mesmo santo multiplicado; eu que nunca colecionei objeto algum, eu que nunca tinha tido um santo.
  Os estilos artísticos das imagens são variados, assim como os materiais de que são feitos, madeira, biscuit, resina, mas o primeiro é o mais sensível, os pássaros já perderam as suas cabeças incontáveis vezes, mas foram logo coladas, exceto depois da última queda, há cerca de vinte dias. Não encontrei as cabeças. O santo continuou sereno, seguro e, o mais importante, com duas aves decapitadas no corpo, o primogênito do grupo ainda é um dos portadores do meu desejo de milagre. Da ausência das cabeças só eu sei, porque a imagem é pequena e fica no alto, ninguém se aproxima muito; a intimidade é só minha. Não me incomoda que a imagem não seja mais completa, porque o santo também não me pareceu contrariado.

  Mas hoje pela manhã, enquanto trocava o lençol da cama, um objeto mínimo, apareceu junto ao rodapé da parede, parecia uma ponta de lápis. Puxei-o com o pé, levemente, para não riscar o piso e quando coloquei-o na palma da mão, eu a vi luminosa, sem sequer um arranhão. Uma cabeça sobrevivente, uma cabeça pequeníssima reluzente, viva, resistente, corajosa. Uma cabeça, há mais de duas semanas, apartada  da sua condição primeira, mas completamente plena em existência. A cabeça ausente do pássaro que nunca se afastou do seu santo protetor. A cabeça que por anos tem ouvido as pregações do seu condutor. Uma cabeça menor que meia unha do meu dedo mínimo, que não estraçalhou-se na queda e que tem, repetidas vezes, desviado da vassoura e dos pés da cama, uma cabeça disposta à volta, sem ressentimentos. Apenas uma, das duas, mas completa em si.

  Há muito não participo dos rituais das igrejas, nenhum dos santos que eu guardo recebeu uma bênção especial, com água ou orações e à medida que chegavam, eram postos ao lado de algum livro, mesmo assim, os santos são reverenciados por mim, como os livros. Carregam os meus pedidos secretos, as minhas angústias noturnas, as misérias disfarçadas, as alegrias e esperanças cotidianas; os santos com pássaros completos, ou não, são as representações delicadas entre consciência e transcendência, matéria e memória.
  Os seis Franciscos enchem o meu quarto de compaixão e coragem.
 
  Na minha mão, a cabeça parece não pertencer a nada, não requisitar corpo ou companhia. Uma cabeça branca com um bico alaranjado e dois olhos negros, uma cabeça tranquila de pássaro que nem parece perdida. Coloco-a em cima de um móvel branco e ela desaparece, enquanto procuro o vidro de cola. A cabeça resgatada fica ainda menor fora da minha palma. Busco o santo de pássaros decapitados para devolver-lhe ao menos uma completude, tateio o móvel e a cabeça espeta a minha mão; ela olha para mim. Escorre gratidão dos meus olhos; a cabeça do pássaro é inteira, sem a orfandade do corpo, como pode ser tão pequena e plena?

  Tenho os santos, são seis, um tubo de cola numa das mãos e uma cabeça sobrevivente na outra. "Senhor, fazei de mim o instrumento de Vossa paz..." ecoa nos quatro cantos do quarto. A cabeça é um milagre que eu não compreendo, me ultrapassa, me incendeia, me conforta.
  Nada de errado nesses vinte dias  de pássaros sem cabeças, de duas cabeças perdidas e uma reencontrada; nada de errado nessas décadas de coisas que não se completam. Os milagres devem ser assim,  ordinários, pequenos e incompletos, cuja espera demora e a realização é efêmera. Espremo o tubo de cola no pescoço de um dos corpos sem cabeça e colo a parte que era ausente. O pássaro do ombro do santo já pode olhar para o horizonte. Amanhã procuro a outra cabeça, se achar, colo o outro milagre, se não, vou continuar a procura.




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