domingo, 13 de maio de 2018

Se você me perguntasse

  Se, num acaso desses, você me perguntasse as horas, o dia da semana, sobre os conflitos no leste europeu, quando começa a lua nova. E se você me perguntasse sobre a novela das nove, sobre o tempo de duração de cada botijão de gás aqui em casa ou sobre as linhas de ônibus da cidade, qualquer coisa eu te responderia, mesmo se não soubesse a resposta com alguma certeza. Eu só não deixava silêncio nenhum nos afastar; a conversa acabar num vazio, sabe?
  Se o nosso encontro se estendesse muito e mais perguntas você fizesse, eu, satisfeita, procuraria alguma resposta, mesmo que algumas delas criassem  incômodos; como o de ter que arrastar algum móvel, para procurar atrás dele ou subir numa escada dobrável, meio instável, para encontrá-la em cima do guarda-roupa ou do armário na cozinha. Nada nos silenciaria de novo, sabe? Nenhuma questão morreria sem nem uma tentativa de resposta.
  Se me perguntasse sobre rios, vales, montanhas, desertos, planícies, savanas, oceanos do mundo, nenhuma geografia seria demasiado distante, que eu não encontrasse alguma indicação de resposta.

  Mas se me perguntasse sobre coisas menos genéricas e muito, muito pessoais, como se eu estou contente, se encontrei felicidade desde a última vez que nos vimos e como vão as coisas aqui, nos cantos menos visíveis da minha existência, eu só te daria sinceridade, como quase sempre lhe ofertei. Responderia que estou sendo feliz como posso, como consigo, como tenho aprendido a buscar os contentamentos, sem aprisionamentos; nem a obrigação de ter de encontrá-los a todo tempo.
  Se me perguntasse se isso também é aprendizado mesmo, se é conquista e se estou certa se tem custos, eu ficaria em dúvida e diria que acho que sim e que não. É um pouco como remar até pegar uma onda mais forte e deixar ser levada, sabe? E depois remar mais e ser mais levada e numa tempestade manter a calma e remar, remar e me salvar e depois tudo de novo, sempre. Você saberia sobre o que eu falo e talvez sentisse um pouco da água resistente sobre seus remos imaginários, mas também, afável, debaixo do seu bote.

  Se me perguntasse se tem valido a pena, se as escolhas nas quais eu me fiei e aquelas que abandonei me levaram ao lugar que eu gostaria de chegar. Eu, de novo, não teria certeza, mas balançaria a cabeça afirmativamente, devagar, enquanto olharia no fundo dos seus olhos, para você, então, lê-los.
  Acho que diria que algumas vezes tem valido muito, noutras nem tanto, mas olho muito para a esquina seguinte, sabe? Sem ansiedade, quando consigo, estou tratando isso, viu? Mas sou muito filha do porvir. Olho muito para frente, como você sabe. Espero pelos outros dias, acordo para os novos dias, mesmo que pareçam se repetir, às vezes. Preparo uma mochila para viagem que nem sei ao certo quanto tempo dura, mas embarco; quero embarcar mais vezes, mas nem sempre chego a tempo.

  Depois, se me perguntasse como estão as suas plantas, não ocultaria o estado da varanda, com bem poucas, cada vez menos vegetação. Algumas murcharam, troquei a terra, a posição em relação aos raios de sol, tirei e coloquei novos cascalhos no fundo, mas secaram ou ficaram muito úmidas sabe? Excesso de água, falta de sol ou sei lá o quê. Outras eu quis doar, como presentes; coloquei-as em vasos bonitos, circulei-os com laços de linho cru e nem expliquei que você as plantou, embora eu sempre visse as suas mãos dentro de cada vaso ofertado.
   Daqui a pouco nada mais aqui vai ter um passado concreto seu, me desculpa? Me perdoa? Mas essas coisas pesam, passam, prefiro que circulem, ganhem outros ambientes. Te distribuo um pouco por dia, te espalho e acho que assim você resiste mais tempo; em mais lugares. É a minha homenagem a você, se você me perguntasse o porquê.

  Se me perguntasse se eu ainda como chocolate em pó puro, como negaria? E leite em pó também, granola e sanduíches sem suco, refrigerante ou água.
- Como aguenta comer isso assim, seco? Vai passar mal. Isso não deve ser bom. Mania, teimosia...
  Eu como, enquanto sorrio, porque ainda escuto o que você não diz mais. E, assim, nossa conversa é ilimitada; as frases repetidas ainda tocam entre uma música e outra. Porque eu ouvi muitas palavras do dicionário na sua voz, eu tenho um acervo imenso que encaixo nas cenas, conforme as narrativas requisitem a sua presença.
  Se você me perguntasse sobre os invernos na cidade, sobre os gatos, minha família e se eu tenho pagado as contas em dia, eu diria que tudo vai indo, como deve ser. Os pés gelados e as caminhadas, o ronronar carinhoso e os pelos no sofá, as brigas e os afetos, as dívidas e os perdões.

  Se me perguntasse se tenho ido ao médico regularmente, se tenho me alimentado bem e dormido. Digo sim para os três, embora em alguma medida, eu nem saiba o quanto faço mesmo, de maneira satisfatória,  cada coisa e se elas prolongam ou fazem a minha vida ser melhor.
  Se me perguntasse o sexo dos anjos, se aqui e agora é paraíso ou purgatório, sobre o manjar dos deuses, se ainda me lembro das estrelas que vimos, tantas vezes, pela nossa janela. Se me perguntasse o que eu ainda procuro quando olho para o céu; tudo ia ser desculpa para estendermos a nossa conversa improvável.
  Se me perguntasse se tenho falado sobre política à mesa, tenho, muito. A cada dia mais e depois que o assunto indigesto é servido, eu me lembro das suas recomendações, mas não perco a fome, embora o apetite, às vezes, se levante da mesa.

  Se me perguntasse sobre algo que me aconteceu hoje, eu lhe contaria que pela manhã fui à farmácia, comprar xampu e a atendente me desejou um feliz dia das mães, enquanto me entregava a sacola com a nota:
- Um feliz dia das mães.
  Soou dura a frase, embora ela sorrisse. Soou estranha, embora seja completamente normal, nesse domingo. Soou cortante, mas também bonita, natural. Eu que não sou, eu que não tenho. Mas já tive e serei. Serei, mãe? Serei mãe? Nem sei.
  Se você me perguntasse, mãe, como são os meus dias,  diria sobre a saudade que eu sinto, sobre os lugares que você povoa com toda a sua intensidade e as plantas que levei embora, cujas raízes avançam e se entranham ainda mais em mim. Mas que tenho sido feliz, como posso, você sabe. Atravessada pelas pessoas que eu trago para casa todos os dias, mãe. Meio errada, possível, esperando pelo dia seguinte. E na única definição que não me aprisiona nunca: sigo sendo para sempre muito filha da minha mãe, mãe. Se você me perguntasse, mãe; se só mais hoje você me perguntasse.



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