terça-feira, 29 de maio de 2018

Não é poesia; é prosa

   Não é amor; é só chuva no final da tarde, depois de um dia de janeiro abafado, recuperando da fadiga
lodosa antes de chegar a noite de pernas compridas e disposição infinita para passear sob a lua. Não é amor; é descanso.
  Não é impaciência; é página compreendida, leitor entusiasmado por novas palavras, outras imagens e experiências. É o desejo pela última página, suspiro satisfeito e melancólico, ao final da derradeira linha. Não é impaciência; é paixão.
  Não é poeira no vidro da janela; é uma faixa de luz reveladora das existências sublimes, das quais medimos distância e esperamos o apagamento. Não é poeira; é outra vida.

  Não é amor; é um copo de vodca ruim com suco de fruta doce, que alegra algumas horas da noite e faz o dia seguinte pesado, modorrento, exausto. Não é amor; é ilusão líquida de duração curta.
  Não era a morte; era só o fim de coisa uma que agora é outra,  embora pareça a mesma só que de banho tomado. Não era morte; era mudança, busca por outra geografia.
  Não eram os sete pecados capitais, as sete maravilhas do mundo, os dez mandamentos, os doze apóstolos, as mil e uma noites, os três mosqueteiros e D'Artagnan; não tinha lista, número, as coisas aconteciam sem serem anotadas, relatório inexistente da passagem. Não eram; são.

  Não é amor; é só uma coleção de frases desgastadas, clichês reaproveitados de uma propaganda de perfume. Não é amor; é desejo de amor.
  Não é desistência; é um cansaço fino de pernas bambas, desacostumadas com as lonjuras de chão e o tempo sobrevoando muito leve, arrastando judiciosamente os ponteiros do relógio antigo de bolso. Não é desistência; é sono.
  Não é uma doença fatal; é gripe no meio da semana, curável com mel, limão, silêncio e mornidão da cama afetiva. Não é fatal; é passageiro e ternamente tratável.

  Não é amor; é um bicho exótico, levantando as penas coloridas, da sua cauda, para o seu ritual ancestral de perpetuação da vida. Não é amor; é biologia.
  Não é o banquete de Platão; é só uma palestra sobre coisas das quais não precisamos saber ou não queremos, para matar a fome, mas não o apetite, ocupar os espaços vazios de necessidades que parecem urgentes, embora outras sejam mais. Não é um banquete; é só um desjejum ordinário. 
  Não é intransigência cega; é desobediência civil, luta armada apenas de resistência e doses diárias de esperança. Não é intransigência; é desacordo com o absurdo vigente.

  Não é amor; são as luzes da cidade na noite de outono, que de tão bonitas, parecem arcos arranjados numa decoração de festa junina. Não é amor; é beleza inesperada.
  Não é intervenção bélica; é desejo de voz paterna, chamando para entrar, empertigado "deixa que eu resolvo, que a minha família quem dirige sou eu!". Não é racional; é insegurança incurável, mentes acovardadas pelas notícias.
  Não é dança; é só um ônibus sacudindo os líquidos das sacolas, amassando os papéis, as hortaliças, as roupas recém-passadas. Não é dança; é ônibus com amortecedores ruins.

  Não é amor; são as músicas que repetem na playlist antiga, que cantamos a letra por costume e nem nos lembramos sobre o que elas falam. Não é amor; é conforto sonoro.
  Não é construção; são só pilhas de tijolos, sacos de cimento, uma montanha de areia e nenhuma ideia de por onde começar se o pedreiro não vier na segunda. Não é construção; é só uma parte da condição.
  Não é a bomba da caixa d'água; é a represa abaixo do nível esperado, aviso da estiagem que chegou adiantando o deserto que se aproxima. Não é a bomba nem a chuva; é o esquecimento da sede.

  Não é amor; é só uma carta de amor sem-amor, de fato, com um destinatário aborrecido de recebê-la do outro lado. Não é amor; é construção tóxica do romantismo.
- E os seus poemas, ainda escreve?
  Não é poesia, infelizmente, o que eu faço. É prosa, que também pode ser música, se chamar com gentileza pelos verbos. Não é poesia; é prosa. Mas obrigada, por perguntar.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas tardia, 16 de Junho de 2018

Contista das dores urbanas (femininas)
Amanda Machado

Como acontecem as conexões por quando aqui passeio. E desta vez lembrei e vi surgir na memória um poema pouco conhecido e metafísico do Drummond - NASCER DE NOVO, que motivou até numa postagem em local outro, nesta tarde fria de junho.

Então, assim disse, escreveu e me ensinou o poeta Drummond:
"Amor, a descoberta
de sentido no absurdo de existir."

Linda a sua prosa!

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 19 de junho de 2018

Querido Paulo
(leitor resistente e interlocutor atento)

Li o "seu" Drummond e o Picasso que veio junto...que lindos, ambos. O reino da Pitangueira é impecável em sensibilidade e belezas. Mas não parou por aí e veio Pessoa com o "Que importa? Se o que foi
Entre nós foi amor(...) Viveremos a Hora/Virados para Deus/ E n'um (...) mudo/Compreenderemos tudo"...ah...Drummonds e Pessoas...ainda bem que existe a poesia.
Abraços,