sexta-feira, 29 de junho de 2018

Uma xícara de café com leite e muito açúcar

  Ela se adianta sempre e eu só me lembro disso, quando ela chega. Atendo-a de pijama, ainda, ou
enquanto faço as unhas, seco o cabelo ou cozinho alguma receita nova. Lá fora, a sua voz já ecoa no corredor, fala com algum vizinho que certamente eu mesma nunca conversei. Interrompe meus rituais domésticos com a sua energia e voz grave ao longe. Só neste instante é que eu me lembro que ela sempre se adianta para chegar aos lugares. Prefere esperar a perder qualquer possibilidade de sociabilização ou acontecimento inusitado, que depois se somará ao seu repertório de anedotas.
 Espera pelo transporte coletivo, que não passa no mesmo horário todos os dias,  espera longos períodos pelo pagamento, quando trabalha sem a regularidade da carteira profissional assinada. Espera pelo atendimento médico nos hospitais públicos, mesmo quando as suas articulações latejam e as lágrimas molham sua bolsa no colo; espera  por alguém ou alguma coisa que a salve das esperas involuntárias.
  Ela me ensinou a esperar.
  Esperar o meu pé crescer para, finalmente, usar o sapatos Mary Jane de verniz preto, herdados da minha prima; esperar pelas férias, depois das minhas derrotas escolares, a esperar pelo leite caipira que chegava numa Kombi azul . Ela me ensinou a esperar pela alegria do novo, da paz, da saciedade.

  Conheço-a longamente, de um tempo em que eu ainda era aguardada e ela já bordava meias para ajudar com as despesas domésticas da sua família. Ela esteve ao redor do meu crescimento muitas vezes e quando se ausentava eu tinha saudades das suas palavras, sempre ágeis, bem humoradas e frequentes. 
  Ela me ensinou o silêncio, por nunca estar nele.
  É o rosto familiar mais remoto, com quem não divido sobrenome ou genes; parente escolhida por gosto e proximidade, mesmo quando morava noutra cidade.
  Ela me ensinou a entender a sua necessidade ilimitada de fala, o desejo de liberdade da sua voz, que fica cerceada de amplitude nos seus espaços profissionais.
  
  Abri a porta, de pijama ainda, antes dela bater a campainha.  Ela estava com o dedo no ar e o vizinho de quem eu nunca tinha visto o rosto, só censurado suas escolhas musicais e a maneira ríspida com a qual fala com a mãe ao telefone, se despedia dela; ele me sorriu. Por causa dela, mas sorriu. Ele continuou subindo as escadas. Ela entrou na minha casa, e trouxe décadas de afeto para a cozinha, onde eu passava o primeiro café do dia.
- Acordando ainda?
Não. Me levantando lentamente.
- Ih...se deixar dura o dia inteiro, que eu sei.
  Sorrio. Não discordo, porque é do conhecimento dela o meu tempo para cada coisa.
  Ela me ensinou a interromper os sonos, mas nunca os sonhos. Ela me ensinou a conhecer com profundidade e esforço de memória aqueles a quem ama; sabe de detalhes físicos, psicológicos, de tempo e lugar de cada pessoa com quem conviveu, embora não saiba de classificação alguma para tais pormenores.
 
  Ela perdeu os cabelos, uma vez, e embora gostasse demasiado de tê-los em fartura; nunca reclamou e me ensinou a perder o medo dos cachorros,  a perder dente de leite, a bola no terreno baldio, para sempre. Seus cabelos nasceram novamente e o meu medo, dente e bola nunca regressaram.
  Ela me ensinou  a perder o que não faria nunca falta e se, por acaso, eu sentisse a ausência, outro regalo chegaria: uma lua muito bonita, uma música no rádio, uma cena de novela emocionante que a gente assistiria no começo da noite.
  Ela fixa os olhos no meu armário novo, enquanto eu pego as xícaras. Ela é observadora sagaz do mundo comezinho; aguça os sentidos quando frequenta lugares novos, descobre os detalhes, os cheiros, a disposição dos móveis nos espaços e das pessoas em recebê-la. Nunca escreve nada, mas guarda na memória e partilha com quem se interessar.
  Ela me ensinou a ter memória e interesse pelas banalidades.

  Sirvo nossas xícaras de café, enquanto esquento um pouco de leite para ela, que não me pede, mas cujo gosto eu nunca me esqueço. Um pouco de leite no seu café e ofereço o açucareiro, ela coloca duas colheres cheias de açúcar.
- Porque o seu café é duro de tomar sem adoçar bem.
  Ela não toma o café que eu faço há anos e ainda se lembra que é amargo. Fala sobre pessoas das quais eu nunca soube, mas ela me explica, é ótima contadora de histórias, nunca deixa furos no enredo. Logo aprendo os nomes e apelidos de todos e consigo imaginar os cenários, graças aos seus excessos descritivos.
  Ela me ensinou a gostar de ouvir histórias; mais, me ensinou a gostar das pessoas das histórias, da diversidade de perfis e das surpresas que cabem nelas.

  Pergunto se ela ainda trabalha na mesma casa, naquela desde o nosso último encontro e ela balança a cabeça com o primeiro sinal de insatisfação da manhã.
- Mas por que ainda está lá?
- São só mais dois anos, depois eu me aposento. Eu penso assim, a cada dia eu compro mais um pouco da minha liberdade.
  Ela me ensinou a ter paciência, a não desistir de estender a roupa no varal só porque chovia. Ela deixava a roupa torcida no balde, com o cesto de pregadores do lado e suspirava:
- Uma hora passa.
  Ás vezes passava no mesmo dia. A chuva durava algumas horas e os raios de um sol fraco, aos poucos, voltavam, mas vinham acompanhados de um vento audaz que ajudava a secar as peças. Noutras, só no dia seguinte, mas o balde com a roupa torcida era  a materialidade da crença dela: passa.
 
   Depois, ela parece pensar na própria frase que me disse, enquanto tomava o seu café com leite, e elabora melhor o pensamento:
- Na verdade, eu estou comprando a minha liberdade desde que nasci.
  Ela me ensinou a sonhar com coisas miúdas, pequenas alegrias planejadas. Sentada na escada da cozinha que levava ao nosso mínimo quintal, ela olhava para as janelas dos prédios muito próximos ao nosso, parava o olhar em algumas cortinas ou detalhes que eu não via e parecia ser bom ficar lá. Quando ela ia embora, eu é que me sentava e fazia o exercício de sonhar com coisas bem simples, sentia a alegria quente, o conforto de viver em pensamento uma banalidade possível.  
  "Estou comprando a minha liberdade desde em que nasci"
  Mais um gole de café com leite, com duas colheres cheias de açúcar e a xícara doce dela não suaviza o amargor que nesta hora parece o mundo. 
  Ela me ensinou a lucidez e a esperança. Gosto dela, mesmo que quando chegue eu ainda pareça não ter acordado para o dia; ela sabe que há sonos que eu dispenso. A liberdade que ela compra é o sonho que eu quis dar a ela, mas tudo que eu posso oferecer hoje é o café com leite e todo o açúcar que ela puder beber. Ela me ensinou a amá-la.



 

2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Grais, inverno de 2018 em Dia de São Pedro e São Paulo

Prezada maestra das sensibilidades femininas
Profª da arte de educar pela leitura Amanda

Sim, é verdade, há dias que parece louca.

Trás consigo hoje a história de luta de uma mulher cansada, guerreira, no afã da sonhada aposentadoria para se libertar. E não é uma mulher qualquer, é uma mulher que ensinou àquela que a recebe o sentido da vida.

Qual é este sentido da vida? Ainda veremos o desabrochar desta resposta neste espaço ímpar, por que o sentido da vida, que aquela senhora, com sapiência ensinou e deu segurança, é como a relação entre os números imaginários e os cálculos complexos de manutenção em vôo, pouso e decolagem de todas as naves aeronaves do mundo. Os radares e os navegadores utilizam dos números imaginários para projetar a descida e a subida.

Estes dados matemáticos fogem da minha compreensão e me encantam, pois é assim que a mulher que ensinou a moça a sonhar fez com ela, para decolasse em segurança ... Puxa vida!

Um abraço, Amanda (Sim, os cálculos de navegação de naves e aeronaves são feitas com números imaginários)

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, último dia junino de 2018

Caro Paulo - leitor generoso das alucinações deste blog e escritor-leitor contumaz das filosofias existenciais

Não sei se, algum dia, veremos o desabrochar pleno de qualquer sentido aqui...mas ainda assim, seguimos...

Quanto aos cálculos de navegação...tinha que ser! Sabia! Não tinha a informação tão certeira, assim, quanto a que me trouxe, mas é claro que na matemática o imaginário também caberia.

Obrigada pelo café...
Abraços