segunda-feira, 25 de junho de 2018

Guardar os domingos

   Os braços curtos e finos não alcançam toda a circunferência do objeto, mas ela o carrega obediente, obstinada e, especialmente alegre. Quem nunca teve uma coisa sua e, por maior a dificuldade de assumi-la, se esforçou muito para merecê-la?
  Os braços finos e as pernas cambaleantes, únicas partes visíveis do corpo atrás do objeto muito querido, foi a minha primeira visão mais terna de estranhos, da manhã de domingo, inundada de modestos raios amarelos. Três passos e um tropeço, mais dois passos e uma pausa para ajeitar seu tesouro com os joelhos pontudos, mais um passo e a mulher do seu lado apressando-a e mais alguns passos vejo  fios de cabelo saltados da sua cabeça. Calça azul, blusa florida e a sua conquista, deslizando a cada centímetro da avenida.

  São dezenas de pessoas com sacolas, carrinhos, famílias com crianças e vizinhos, sorrisos matinais uma vez por mês aos domingos. Há alguns anos eram poucos, um número bem menor do que eu encontro agora. Espalhados pela avenida, esperam por carros, debaixo das marquises vazias de lojas fechadas e em pontos de ônibus, aguardam pelo transporte que só passa uma vez a cada hora. Andam em pequenos grupos, fazem piadas entre eles e sorriem, enquanto os mais velhos arrastam suas sacolas com mais peso do que conseguem suportar. Alguns quase se afogam, mas não abandonam coisa alguma pelo mar, seguem cuidadosos no bote, para que ele não vire e não percam suas certezas de um mês mais fortuito. As crianças são as mais solares, ajudam os adultos com o transporte, enquanto brincam, brigam, chacoalham os irmãos mais novos que ameaçam denunciar aos pais alguma regra infringida, mas voltam a amizade quando o caçula se cala.
  Vêm de partes diversas da cidade e movimentam o vazio das manhãs de domingo, ao menos uma vez por mês.

  Alguns homens, depois de garantirem as suas sacolas cheias e pesadas, enquanto aguardam o transporte,  pedem uma bebida barata no bar e dividem entre eles ou com suas companheiras,  já sentadas nas portas dos outros comércios, da mesma calçada, de olhos fechados com o rosto em direção ao sol.
  Logo a calça azul, com toda a sua dificuldade, se aproxima de mim e vejo seu rosto de menina tão alegre, que eu quase, como ela, tropeço. De repente, me sinto tão frágil quanto ela, mas tão obstinada, também, em carregar um tesouro pesado, mas muito sonhado; é difícil receber um sorriso desses quando ainda se está com sono, mas eu me arrisco a carregá-lo.
  Os domingos em que eles estão são os mais alegres e quentes, porque trazem vozes, pequenas confusões e tumultos que cabem tão bem neste dia da semana. Os domingos em que eles se espalham pela avenida, me presenteam com as recordações mais doces dos meus próprios domingos.

  Virem até aqui e depois, partir arrastando sacolas pesadas, puxando carrinhos que quebram as rodas a todo instante, gritar com as crianças que se afastam subitamente do grupo, esperar por algo que os retire desse lugar da cidade,  imagino que  não seja um programa familiar voluntariamente divertido.   Os adultos não reclamam, mas sabem que há uma gravidade a ser levantada do chão e levada até em casa. Mas as crianças abrem as suas próprias janelas.
  Quase tudo pode ser alegre nos domingos da infância. Quase nada pode ser esquecido dos domingos, quando eles não eram nossos e mesmo assim nos pertenciam, no final.
  Os domingos da infância são pedras incrustadas nas paredes mais internas que nos mantém; nunca se apagam e, às vezes, cintilam fortemente quando são iluminadas por algum feixe de luz mais potente.

  Os meus domingos de longas viagens de ônibus, ainda brilham. Os domingos partilhados em um ônibus cheio, com personagens muito singulares que vez ou outra ainda me visitam nos sonhos e, ainda, me ensinam novos desenhos no caleidoscópio, não vão embora. Os domingos de quando íamos em pé, atravessando a cidade, carregando nossas mochilas com roupas e chinelos para brincar e dividíamos os cadernos do jornal do meu pai, ainda me alegram, mesmo que eu nunca mais esteja neles.
  A infância dura uma só viagem  de ônibus, chegamos ao ponto final num domingo que não sei precisar quando e descemos. Mas as variadas vozes, as risadas de domingo ainda me alcançam mesmo que se passe muito tempo.

  As pequenas pernas azuis passam por mim e o seu rosto cheio de meninice me sorri. Este é um domingo-pedra que ficará incrustrado na parede dela. A sua alegria em carregar um pacote grande e, mesmo cambaleante, não desistir de chegar até ao final.
  A mãe carrega a gravidade do futuro da filha e a menina carrega o sonho delas; bem assim, abraçada, resoluta e muito alegre. Este é um domingo que não termina quando a segunda-feira estacionar na porta delas.

  Olhei para o seu pacote transparente e um cobertor marrom dobrado em quatro, ultrapassava a altura da sua cabeça e ia até abaixo do joelho. E eu ainda pensei: "Ih...esse cobertor parece áspero". E a menina abraçada com ele, tão feliz quanto eu com um caderno do jornal de domingo do meu pai.
  Dois braços curtos demais para o pacote, uma cabeça atrás do seu tesouro e a menina carregando o seu domingo para sempre. Há de se guardar os domingos, esse é um mandamento do qual eu nunca me esqueço. E daí se o cobertor é áspero? Macio é o caminho que ela faz com ele.



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