terça-feira, 3 de julho de 2018

O brinde do terceiro copo

  Uma estante baixa, menos de um metro e oitenta, com três prateleiras e duas portas, acabamento simples com camadas de verniz que deixavam os veios da madeira rústica aparentes e brilhantes. Não era nova, quando chegou já tinha história. Uma poltrona marrom com pés palito, que ficava debaixo da janela, onde no inverno, tomávamos sol, se tivéssemos a sorte de encontrá-la vazia. Foi vermelha brilhante, de couro marrom, estampada com motivos florais e, antes de ser cinza, com estampa de desenhos geométricos; a que eu mais gostei. Teve uma beliche, que só usamos a cama debaixo para dormir, porque a minha mãe tinha medo que caíssemos da cama de cima, as roupas para passar às vezes ficavam nela. Um guarda-roupas, uma cama de casal com colchão de mola, um armário de cozinha azul e desbotado, que um dia pintei de branco, um roupeiro, que ficava no quintal com as ferramentas do meu pai, uma banqueta estofada com a penteadeira, que nunca mais vi em casa alguma.

  Nas minhas casas os móveis usados sempre encontraram lugar de existência acolhida e permanência longa .
  Quando os meus pais se casaram, a metade dos móveis da casa era de segunda mão e a outra metade chegou parcelada, um de cada vez, ao longo de mais de quarenta anos. Nunca tiveram uma casa plenamente completa; a gente ocupava os vazios, aprendemos a distrair as ausências.
  Na casa amarela tínhamos uma mesa de madeira escura, de oito lugares, cuja extensão, que ficava escondida embaixo, poderia ampliá-la para doze, aí era só completar com as cadeiras de uma mesa que ficava na varanda e pronto. Eu achava a sofisticação última de uma família, aquela mesa.
  Quando fomos para o prédio verde, a mesa não cabia nem com os oito lugares. Trocamos a antiga por uma nova e compramos um conjunto de sofá usado. Foi  barato porque tinha muitas manchas no estofado, mas tinha os braços largos, bem grandes e detalhes em madeira pouco arranhada. Meses depois, trocamos o tecido e o sofá não perdeu toda a história, embora as manchas tivessem sido apagadas.

  Adquirir móveis usados era uma questão econômica, sobretudo, mas aprendi a gostar do que chegava em casa com marcas de outras famílias, nem sempre combinava com o que tínhamos, mas não era difícil me afeiçoar ao que chegava depois e que podia ser mais antigo do que todos nós. Eu buscava etiquetas com datas, rabiscos, lia textos inteiros a partir das marcas involuntárias na madeira. A mesa de jantar, da casa amarela, era repleta de impressões; nós também deixamos nossas marcas nela; fórmulas de física, pedaços de letras de músicas em inglês, números da contabilidade doméstica, assinaturas, pedaços de cartas que nunca enviamos, receitas de bolo, desejos de final de ano, listas de supermercado, testamentos de heranças que nunca existiram inventados, bilhetes de despedida que pararam no remetente.

  Eu gosto de mobília vinda de outras casas, especialmente de desconhecidos, eu gosto de saber que vêm de outras vidas, me sinto privilegiada em ter, sob o meu teto, objetos cheios de memórias. Durmo bem em cama usada por não sei quem, me alimento plenamente em mesa que outros também comeram; descanso na poltrona que alguém chorou, repousou ou amou outro alguém. Não tenho superstições, não mantenho ritos de limpeza energética, só aprecio o descansar de um móvel já repleto de histórias no meu piso vazio, aberto a recebê-lo.
  É um móvel idoso, cuja imaterialidade das cenas em que esteve ultrapassa sua natureza definitiva. É um móvel que ainda está sendo, que não é mais só madeira, aço, molas, espumas, tecidos, tintas; mas vida, são as alegrias de alguma família, as tragédias individuais, os corpos que transitaram por eles e as histórias que eles guardam silenciosamente, com poucos sinais de partilha. 

  A mesinha de centro na qual apoio o meu livro, agora, é um desses cofres de segredo, com duas pequenas distrações de extroversão. Não a comprei, não ganhei  ou a roubei. Foi um encontro, numa sexta-feira, antes das oito da manhã, quando desci para descartar o lixo do apartamento e a mesinha estava lá do lado dos containers.
  Pés de madeira torneados, baixa, tampo redondo, segura "uma lixadinha, pintura e vai ficar linda". Subi com ela nas costas e a coloquei no lugar que era dela sem nem sabermos uma da outra. Por dias eu a analisei, perita mesmo, os pés estavam bem firmes, bem cuidados, nenhuma mancha neles, só pintaria porque não gostava da cor de madeira muito escura. Talvez tenha a minha idade, lembro desse estilo de móvel das outras casas, de amigas, vizinhas, cujos móveis eram novos. No tampo da mesa, duas marcas fortes de copos, coladas uma a outra.

  Passei a contemplar as duas marcas, todos os dias. Lia algumas páginas do meu livro, pegava o meu copo e observava as duas marcas entranhadas na madeira da mesinha de centro. Tão próximas, tão ligadas, marcas siamesas. Passei a pensar nos donos dos copos e a razão de deixarem seus copos tão próximos. "Seria um casal? Seria um casal que bebia todas as noites juntos? Alguma promessa de companhia, lealdade e amor eterno? Ouviam música? Sorriam, enquanto bebiam? Faziam planos diante dessa mesa? Por que a descartaram? Viajaram ou se mudaram para um lugar menor? Separaram e venderam tudo?".
  Uma das marcas era redonda e larga: "copo de uísque". A outra era um círculo fino e menor: "taça", "Vinho branco". Um homem que bebia uísque e uma mulher que bebia o vinho. Várias noites eu pensava no casal, nos dias de bebida colada em cima da mesa, enquanto seus corpos obedeciam a alguma música do disco de vinil. 
  Duas marcas que eu não consegui apagar. Para a minha caneca, eu tinha um porta-copos.

  Mas numa das noites, observando as marcas, achei que não eram de uma mesma época. A mais grossa parecia incrustada há mais tempo, mais profundamente, o seu líquido tinha mergulhado antes nos veios da madeira. A mais fina, veio depois, me pareceu; ainda que também fosse antiga, mas menos.
  E qual a razão de um outro copo, de um outro tempo, de uma vida não partilhada com o copo de uísque, estar colado a ela?
 E se nunca tivessem se visto e se a segunda mancha fosse uma tentativa de companhia à primeira ou de afastar a própria solidão. Descansaram juntos ou em tempos diversos, quem eram os donos dos copos? As perguntas são as prendas que vêm com os móveis usados; é preciso ter um lugar, na casa, para elas também.
  Olho para mesa e me esforço para entender os tempos das duas marcas, os copos invisíveis em algum momento devem ter se esbarrado; quem sabe num brinde? Uma marca que, voluntariamente, se agrega a outra para contarem uma história sobre duas vidas que não partilharam numa mesma sala ou com as mesmas músicas. Duas vidas que não se amaram, não viajaram, não sonharam, não dançaram, não se separaram e, tampouco, se desfizeram de uma mesinha de centro para se afastarem dos seus copos perenes.
  Não sei quem são os copos e o quanto estiveram próximos um do outro. Sobre quantas décadas de distância entre as suas bebidas eu também só encontrei vestígios incertos. No entanto, eu sigo imaginando a proximidade das suas existências, a partir de uma mesinha de centro que agora ocupa minha casa.
  Essa é uma festa de três anfitriões; o terceiro copo é o meu. Vamos brindar ao encontro das histórias possíveis numa mesa de madeira de centro. Ele ergue o copo de uísque, ela segura a taça de vinho e eu, sou a última, com minha caneca de chá quente; brindamos ao encontro, à eterna passagem do tempo e as permanências das pequenas manchas nos móveis que soubemos preservar. Dispenso o porta-copos, sou a terceira marca que, um dia, alguém interrogará.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas deste quase 4 de julho do AD 2018

Puxa vida, que conto, hem! Fala da energia vital fluida e envolvente! Só isto e isto é muita coisa!

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 4º dia, do ameno (no aspecto climático, ao menos), julho de 2018

Ah...Paulo...sempre preciso e com preciosa leitura!
Abraços, ótima semana!