sábado, 7 de julho de 2018

Se fosse só dois a um

   Convoca a memória, repassa os últimos lances pausadamente; na dúvida, volta. A exibição detalhada das faltas não marcadas, quando somente um pedaço do campo está na tela. Expulsão ou segunda chance? Não tivemos segunda chance.
  Todos correm, inclusive nós que nem participamos do aquecimento. Que estratégia é essa que nos foge? Que não acontece do jeito planejado. "Você joga para mim, corre, corta e espera eu jogar para você". Mas um de nós cai, a jogada é interrompida; eu não jogo para você e você não corre, não corta, não espera na área. Temos tempo.
  Na beira do campo, o estrategista grita "paciência", eu ouço "eficiência", você entende "potência"; eu acerto todos os passes, mas você coloca força demasiada. Chuta todas as bolas para fora. Insistimos no ataque, parece ser tudo o que temos; deixamos a defesa desguarnecida. Eles arrancam, enquanto nós tentamos entender  em que parte erramos. Eles são rápidos, eles não nos odeiam nem olham para nós, não nos temem; nos ignoram. O primeiro gol não sai dos nossos pés.
 Mas temos tempo.

   Os comentaristas da TV não falam de nós, mas se falassem não saberíamos agora. Sua chuteira vacila uma, duas e você não para o jogo nem pede para trocar; enquanto eu ignoro os espasmos na minha panturrilha. Acostumada à dor, não admito impossibilidade.
"É a partida das nossas vidas" no vestiário ainda nos olhávamos, agora não, a partir do apito é correr, segurar a bola o quanto pudermos e alvejar o goleiro adversário.
  O primeiro gol que não é nosso, o tempo que não podemos suspender para pensarmos melhor. Os comandos que ouvimos trocados. Éramos bons ouvintes, lembra? Tão bons quanto somos com os pés; ou éramos? Temos tempo.
  Não aceitamos água, não chegamos muito perto da linha; estamos marcados e não sabemos como lidar com essa novidade de sermos vistos. "Quanto falta para os quarenta primeiros minutos mesmo?"
Temos tempo.

  Eu acerto o passe, você erra o chute; eu passo errado, você se desespera. Eu olho para os seus pés com a chuteira frouxa e tento avisá-lo; você ignora tudo o que não venha com a bola.  Eu só consigo ver as as tentativas desperdiçadas e os seus pés incertos nelas. Ninguém mais ouve nada e, agora, vemos muito pouco: a trave que nos limita, a rede que não conseguimos balançar. "E se cravássemos um pênalti? Se simulássemos a queda?" Ou ainda é cedo para recorremos à indignidade?
  Outro gol nos atravessa.
  Tento não sentir a dor nos músculos e corro mais; tento não me abalar com a segunda bola na nossa rede, mas já não sei ser otimista. Eu caio e você não para o jogo, eu tenho dor e você não se sensibiliza. Ninguém mais acredita nos meus tombos.
  Mas temos tempo. Um pouco agora e, depois, metade da nossa chance. "Deve bastar".

  Corremos muito, mas perdemos a bola, deixamos as laterais vazias e acreditamos mais na marcação do que nos nossos improvisos. Quando foi que a gente aprendeu a ser tão reto? Quando desistimos da paixão que nos trouxe aqui?
  Nosso ataque desesperado e ineficiente e nossa defesa completamente vulnerável. Dois golpes que só percebemos quando completamente executados. Podemos abandonar histórias, mas não podemos apagá-las. Se não voltarmos para o segundo tempo, nunca saberemos se teríamos virado. O juiz apita. Ainda temos tempo.

  Trocar a sua chuteira ruim, enquanto eu recebo a massagem e o emplastro no músculo exausto; não nos falamos. Repetir, no vazio, que ainda temos tempo, como único mantra que poderá nos salvar.
Podemos acordar dos sonhos, mas não podemos despertar do desejo de que eles ainda aconteçam. Entramos para vencer.
  A experiência grita do banco palavras que não nos chegam ou porque não nos alcançam ou porque não sabemos mais ouvir. Você está completamente surdo e eu perco a voz. Só chutamos. Em todas as direções, com todas as partes dos pés, de qualquer maneira e com toda a força que podemos. Em casa, todos veem os gols que não são nossos, replay de um tombo seu e uma reclamação minha para o juiz. Mas temos tempo.

  Podemos levantar dos tombos, não falar sobre eles, mas eles ainda farão parte do caminho. Eles não falam dos nossas quedas, nós também tentamos ignorá-las, mas elas estão lá. Se no vestiário tivéssemos nos desculpado, nos olhado profundamente, mas preferimos acreditar no tempo que tínhamos. A nossa rede não balança, atacamos mais, acertamos o passe e o chute com a bola no fundo da rede.
   Temos tempo. Vamos a reação. Tentamos prender mais a bola, chutar em outros ângulos, mas ainda não nos vimos.

   Primeiro perdemos as palavras de fora, depois as nossas, perdemos a medida de inventar e o motivo que nos fez entrar em campo. Perdemos nossos olhos e não partilhamos a bola. Acreditamos demasiadamente no tempo, nos esquecemos de invadir a área deles e cuidarmos da nossa.
 Se ao menos terminasse quando o placar marcasse dois a um. Mas o placar queimou, o cronômetro parou e o jogo ninguém mais acompanha; exaustos e perdidos continuamos em campo.
 "Acabou", a voz grita, mas nós, os únicos dois jogadores em campo, não escutamos mais nada. Se fosse só dois a um, mas perdemos de muito mais e continuamos repetindo que ainda temos tempo. Não temos. Não tivemos.
  Se fosse dois a zero, não pensaríamos na chance que quase tivemos. Se fosse só dois a um em um jogo qualquer, mas era essa a única chance que tivemos. "Pode levar o lixo quando descer?". Ele não ouve há bem mais do que noventa minutos. "Acabou", a voz que vem de fora insiste, mas os nossos pés continuam a correr e procurar a bola.


2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Discutir relação ... tenso demais!

Amanda Machado disse...

Um pouco....rs