domingo, 8 de julho de 2018

O que entendo sobre o amor é quase uma página em branco, dobrada dentro de um livro

  O que eu conheço do amor é quase nada; menos do que física, teologia e correntes marítimas. É  ele
chegando para apaziguar a dor de uma franja feita com tesoura cega no banheiro de casa; semanas com a testa em uma linha tortíssima e o amor dizendo linda.
  O que eu conheço do amor é bem pouco; menos do que sei sobre os pontos no bordado de uma camisa que não me serve mais, as contas com dízimas periódicas ou sobre o desenrolar da Guerra do Peloponeso. É ele quem abre as cortinas, dá um beijo fresco no rosto quente com olhos perdidos e apoia o corpo franzino para que, sentado, veja o sol de mais um dia. Ele é quem ajuda com o banho, a alimentação e a continuar uma música muito antiga, que a memória acamada não alcança mais; permanece na única palavra repetida e o amor não se cansa de escutar.

 O que eu suspeito do amor é ainda menos do que me negar a voltar para buscar o guarda-chuva quando o céu escurece, o vento levanta a poeira do asfalto e bate as portas de casa; chego sempre molhada. É ele acordando mais cedo para fazer o café que não toma, por causa da gastrite, e com pouco açúcar porque foi assim que quem ainda dorme elogiou sempre.
  O que eu desconfio sobre o amor é menos frequente do que contrariar sucessivas vezes a minha intuição e ela sempre vir em um resgate desesperado, sem nunca me cobrar as negativas.
É assistir à Mariana dando duas voltas, ao redor do braço, com o cadarço que prende a chave, todos os dias às cinco da tarde, para buscar o irmão na escola. Antes, ainda passam na padaria e, às vezes, no supermercado. Mariana, nove anos, o irmão tem seis, subindo a rua quase tão, ou mais,  adultos que os próprios pais que não se falam desde o natal. O amor avançando os tempos para eles dois se cuidarem.

  O que eu falo de amor; só posso falar em outra língua, porque é extraordinário, ainda que frequente as mesmas ruas do bairro onde moro, que pise nas mesmas cinzas de cigarros dos vizinhos e que inteire a passagem com moedas, como eu. Só o que posso falar de amor é do que não sei, porque do que sei quase não falo, silencio, me calo em respeito à sua tão sincera dignidade.
  O que falo de amor sai com a voz tremida, gaguejada, quase incompreensível, não por temor, mas por alta conta que o tenho, quando ele segura um dos filhos nos braços e ajuda a empurrar o carrinho com a boneca da outra filha, que quer imitá-lo na maternidade.

  O que recebo do amor é quase tudo: lenço com álcool no pescoço no meio da noite, casa aberta no domingo de manhã, carinho nos cabelos e a reinvenção da infância que não sei se tivemos.
  O que eu tenho do amor é muito, é uma prosperidade que não termina nem se ele vai embora. Deixa sempre o que de melhor ele soube gerar.
  O que eu guardo do amor é demasiado fluido, mas que nunca é levado pelas correntes, mesmo as muito fortes, de água. É alegria sincera pela  alegria discreta de alguém a quem se quer tanto bem, que o contentamento alheio torna-se seu. Amigas há vinte anos e recente; sem cansaço.

  O que eu defendo do amor é a bobagem de não sair sem ele, não falar sem que ele esteja bordando as frases, não escondê-lo do ódio, da imperfeição, das obscuridades humanas; pelo contrário, apontá-lo como arma, estendê-lo como escudo, na defesa de levantá-lo sempre como bandeira única.
  O que eu resisto no amor é libertar tudo que parece preso ao meu redor: passarinho, cachorro em apartamento, gato com infecção urinária: "há duas semanas ele mal andava e hoje não volta antes das seis para casa. Fico sozinha, mas ele faz o que ama".
  O que eu não me conformo com amor é quando ele se silencia nas horas que mais precisam da sua voz, quando ele acha que já é o bastante e economiza nos gestos, nos passos, na quantidade de pó de café e nas músicas sem o fone.

  O que eu escrevo sobre o amor, eu não mostro. Envio em garrafas sem destinatário, porque amor não tem único destino certo. É variável, é múltiplo e indeterminado em sujeito e objeto; só o verbo é permanente, mas o jeito dele também não é.
  O que eu fotografo do amor, as lentes da minha câmera não conseguem captar com precisão, mas minhas retinas ficam, para sempre, impregnadas da suas imagens.
  O que eu arquivo do amor, são os três estudantes do apartamento, levando a mulher que faz o serviço doméstico até o hospital, porque ela não parece bem. E o amor inexperiente, que sempre foi acompanhado, aprende a ser companhia e a falar sobre uma dor que não era sua; agora é.  

  O que eu conheço do amor é nada. É Mariana crescendo um pouco mais que o irmão e ele vindo atrás; os dois, sozinhos, amando um ao outro e a vida na infância que lhes foi permitido experimentar.
  O que eu entendo sobre o amor é uma ausência de explicação, sem prova alguma ou documento com firma reconhecida em cartório. É uma página em branco, onde muito se quis dizer e nada soube, dobrada dentro de um livro, encontrada anos depois e compreendida; com atraso, mas sabida.
  O que eu sinto do amor é Mariana, tirando as duas voltas de cadarço do braço, abrindo a porta, colocando os pães sobre a mesa e levando o irmão para janela para fazerem bolhas de sabão. Na minha janela, uma chuva leve e colorida, às seis da tarde de sexta-feira; há a infância que resiste. Quando eu me aproximo para sentir o cheiro, uma bolha repousa no vidro, estoura e fica só uma espuma com um pouco de sabão em pó escorrendo. Passos os dedos, cheiro fundo e levo a mão à boca, estou lambendo o amor para não esquecê-lo nunca.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 20 de Julho de 2018

Pareço Louca é um mar de possibilidades de aprendizagem do universo sob a óptica encantadoramente feminina. Então é isto!

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 21 de julho de 2018

Pareço louca é o privilégio de receber estimulantes, felizes e generosas visitas. Então é também isto!

Abraços