domingo, 22 de julho de 2018

Podia flutuar dentro de um cinzeiro

  Era uma ilha de certezas absolutas, cercada por algumas dúvidas que não alcançavam os seus pés, mas que esbarravam nas suas bordas de areia, desde que começou a frequentar as aulas duas vezes por semana.
  Quis tentar alguma  atividade artística para relaxar e, ao mesmo tempo, ter motivos para não voltar imediatamente para casa depois do trabalho.  Pensou em origami, mas achou que a fragilidade do papel e as dobraduras muito delicadas, ainda não caberiam, sem rasgos, nas suas mãos desassossegadas.
  Depois, pensou no curso de aquarela, porque achava bonita a atividade vista de longe, sentia-se em paz só em olhar os alunos de costas, debruçados sobre os seus blocos de papel, com o pincel numa das mãos e a paleta de tintas na outra. Mas quando pegou a lista de materiais, viu que não se restringia ao  pincel e ao estojo com as cores básicas, mas requisitava bloco de folhas de marca específica, grafite para desenho, quatro pincéis, doze bisnagas de tinta, flanela, reservatório para água - pensou em perguntar se copo descartável serviria, mas para os outros itens não tinha substituto mais barato -  achou que a atividade não era tão simples como pensava e o investimento talvez não tivesse o resultado esperado. Poderia ficar ainda mais ansiosa pela quantidade de material que precisaria se lembrar de levar para o trabalho duas vezes por semana,  aprender os seus usos e, ainda, o tempo de reposição de cada um. As aulas eram às segundas e sextas e se alguma tinta acabasse na sexta e ela não se lembrasse de repô-la antes da segunda?
- Melhor não.

  Também não escolheu o mosaico porque emendar delicados cacos não pareceu ser  uma habilidade possível; produzir cacos era mais próximo da sua história. Teatro e  música, nem pensar. Não tinha idade e, principalmente, disposição para vestir uma malha e simular situações ou entoar, exaustivamente, repetições sonoras até poder praticar com  uma música completa.
  Mas quando passou pela porta do atelier de cerâmica, imaginou que a materialidade de um prato, um copo, de vasos cilíndricos e esculturas pesadas, poderiam se adequar melhor às suas mãos pouco acostumadas às sutilezas.   
   Escolheu a cerâmica porque dentre as atividades disponíveis, foi a que pareceu mais fácil, mais concreta e a argila não era frágil como o papel, não requisitava uma bolsa cheia de tintas e pincéis caros como a aquarela, não era demasiado delicada como os cacos do mosaico nem a faria se expor num palco, nas festas de final de ano. Na aula com argila relaxaria e, ainda, produziria peças com alguma utilidade cotidiana: um prato, uma caneca, uma escultura para segurar os livros na estante, um cinzeiro que fosse.

  Matriculou-se em Cerâmica I, que começou com as monótonas  aulas teóricas. Decepcionada, no início,  as segundas e sextas só eram boas porque chegava em casa mais tarde. Quatro aulas depois e pode, finalmente, manipular a argila. Sentiu o êxtase da possibilidade de alguma arte materializada nas mãos quando coloco-as na massa, mas logo a decepção de não conseguir enxergar nada além de barro.
  Tinha que juntar o pó à água e criar uma massa de textura intermediária, nem muito dura nem muito mole. Já nesse passo, teve muita dificuldade, achava que colocava pouca água, adicionava mais e a massa escorria pelos dedos como lama em enxurrada, pensava que colocava pó em boa medida, mas a massa ficava completamente endurecida. Enquanto os outros alunos já começavam a dar alguma forma à massa, ela ainda nem conseguia encontrar a argila, depois de tanta água e pó.

  Tudo com a argila foi inexplicavelmente difícil: encontrá-la a partir dos dois elementos em cima da bancada, tentar moldá-la, fazer dela algo e levá-lo ao forno. Cada etapa foi um desafio com sucessivas humilhações. Não esteve nunca acostumada a não ser brilhante. Mas com a argila experimentou não ser, não saber e falhar muito.
  Na roda de modelagem, viu quase uma centena de formas se desfazerem na sua frente. Os vasos não nasciam com facilidade, ficou com as formas planas muito mais tempo do que desejava e detestava a fealdade dos seus planos tortos, queimados ou espatifados dentro do forno.
 A cerâmica era a incerteza que começava a roçar os seus pés seguros na ilha. A argila era o começo das suas dúvidas que se desdobravam em outras a cada aula.

  Pensou em desistir dezenas de vezes, faltou algumas segundas, mas sexta-feira já tinha as mãos marrons de reconciliação, tentou conquistar a compaixão do professor, mas o homem baixinho e troncudo dava respostas secas e só solicitava mais, dele nunca partia os elogios. Não era o instrutor zen das aulas que imaginou ter. O relaxamento esperado nunca existiu.  Mas teve o alívio de chegar em casa, ao menos dois dias da semana mais tarde, o contentamento de aprender a misturar a argila e, às vezes, até se ver refletida nela, quando formava uma poça d'água no centro do monte de pó avermelhado. Desde que começou a fazer as aulas de cerâmica, passou a pensar mais na medida das coisas e na força empenhada em cada uma. Tudo é medida e intensidade, na argila.

  Se cozinhava, pensava na proporção dos temperos e duvidou que soubesse calculá-los bem. Muito sal na comida ou sal de menos? O seu paladar era outro depois das aulas de cerâmica. Tudo tinha outro gosto. Tudo era passível de gosto, para além da cozinha. Às vezes sentia numa imagem, música, numa palavra lida ou ouvida a aridez da argila seca e, aos poucos, a sua textura maleável.
  Se esfregava o cabelo da criança, pensava, ainda com espuma nas mãos, se era com muita ou pouca força. Começou a refletir sobre as suas mãos na cabeça molhada, até na própria. 
  No trabalho, já não sabia se era exigente com muita  ou pouca força. Suas palavras, de repente, estavam em uma bancada, recebendo água e movimentos, ora fortes ora suaves, das suas mãos que aprenderam a continuar, mesmo depois dos fracassos.
  Desde que começou as aulas, tem se sentido menos mão e mais massa. Tem tido bem menos certezas e isso a fez ser ainda mais frequente e dedicada às aulas de cerâmica. Tudo o que conseguiu fazer, até agora, foram doze pratos tortos e um cinzeiro quase bonito.

  Ela e a argila, indomáveis matérias, tortuosas insistências, existências aflitivas e quebráveis, mas  fortes, até em pedaços. Concretudes imaginadas e surpreendentes subjetividades.  Não era mais ilha, nadava entre ondas de dúvidas, sem medo de afogar. Escolheu mudar de casa e ir às aulas já não era para evitar o que não queria encontrar no antigo lar, mas era o gosto pela aceitação de não ser brilhante sempre e a ousadia de não desistir de um aprendizado demorado.
  O professor, finalmente, gostava dela, no dia em que ela tirou o cinzeiro do forno, saiu dele a primeira manifestação de aprovação:
- Nada mal.
  Voltou a comprar cigarros para usar o cinzeiro; acendia-os, mas nunca levava-os à boca. Via-os queimarem no cinzeiro que ela fez. Não é pela dureza do barro, é mais pela efemeridade da fumaça. No fim, quanto mais duro o material, mais delicadeza ele requisita. Estranha aula de segundas e sextas. Misterioso tempo em que aprendeu a medir a intensidade da própria força.
  Gostava de voltar para casa agora, mas não faltava às aulas de cerâmica. Saiu da ilha e flutuava, dentro de um cinzeiro, sobre ondas de errâncias.



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