terça-feira, 24 de julho de 2018

É pelo que não é preciso, justo nem certo de durar

   Não é pelos olhos rasos e claros, nem sei ainda se são azuis, verdes ou marrons bem claros, depende do horário e do tipo de luz que incide  neles, mas já sei que não são os olhos. Não é pelo que sei dele, quase nada ou muito, ainda não sei mensurar sobre o que conheço.
  Não é pelas pastas de grão de bico nem pelo gengibre que perfuma as pontas dos seus dedos, não é pela galinha que ele não mata, não compra, não come, nem pelo porco, vaca ou peixe dos quais ele nunca se alimentou. Não é pelos gatos que não são dele e vivem deixando  pelos  nas suas  roupas escuras, não é pelos animais que ele abriga sem pedir lealdade em troca.
  Também não acho que seja pelos conhecimentos com os quais ele me presenteia, sem nunca chamar de seu e, despudoradamente, deixar escapar um "certamente". Não é  pelos raios que ele estuda, pelas descargas elétricas que ele examina, não é  pelos riscos que ele assume e eu nem sei se assume ou se só aceita o que é inevitável. Nunca falamos sobre isso. Nunca falamos sobre quase nada.

  Se eu amo o estrangeiro é pelo seu silêncio em outro idioma; os longos minutos em que ele não diz nada. Ou é porque fala o meu nome como ninguém mais diz, pareço outra se o estrangeiro me chama.
 Se eu acredito em alguma eternidade é porque ele não mede a duração, não divide o tempo em meses, anos ou períodos de números, mas em lugares em que esteve; sua história toda é um mapa que eu só sei apontar onde nos conhecemos:
 - Bem aqui, minha cidade.
  O que eu amo no forasteiro é o que ele não faz: não manda flores, não diz que as minhas mãos são macias nem que meus lábios parecem cerejas frescas. O que me deixa confortável com o estrangeiro é que ele não me manda mensagens, não me procura se eu não estou e nunca me pergunta sobre o que eu estou pensando. O que faz meu coração parecer um dos lugares do estrangeiro é que ele quase não usa pronomes possessivos.

  Não é pela singularidade da sua cultura nem pela língua que eu ignoro. Não é pelas palavras aleatórias do seu dicionário que ele me ensina a pronunciar: também, vasto, panela, chão, livros, comandantes, tessitura.
  Não é pela bainha que ele não faz na calça que arrasta pelo chão nem pelos chinelos de borracha que ele começa a colecionar. Não é pelo corpo bonito, tampouco pelo nariz pronunciado e uma cicatriz de queimadura escorrida pelo dorso.
  Não é pela visão clínica, mas audição muito prejudicada, também não acho que é pelos sorrisos que obrigam a sua testa se dobrar. Não é pelas histórias que ele me conta, mas talvez seja pelas que ele se cala. Suas histórias acabam num parágrafo; ainda bem.

  Se eu amo o estrangeiro é pelo passaporte que ele tem que levar a cada ida à padaria, pela iminente possibilidade de deportação e porque, mesmo assim, ele ainda rega, aduba e procura sol para as suculentas que já estavam na varanda do apartamento onde ele mora. Se em volta da minha cabeça a imagem dele sobrevoa é pelos elogios que ninguém mais faz.
- Sua coluna é muito boa. Você poderia atravessar um deserto, porque tem pernas firmes e longas.
  Se o estrangeiro me emociona é porque não me pede nada, não me solicita, não me mostra, não me aguarda, não acha que tem o direito e, talvez, nem mesmo queira o meu amor.
  Se eu o amo é porque ele é evasivo, silencioso, sabe arrumar malas e separa o lixo reciclável.

  Não é pelo seu jeans antigo comprado em um país em que eu nunca fui  e que já tem as marcas das dobras nas coxas e glúteos. Não é pela arma que ele viu e não quis pegar, pelas mortes que ele sentiu e não quis vingar, nem pelo tempero da comida da avó do qual ele ainda se lembra. Não é pela chuva que ele gosta de tomar nem pelas janelas que ele deixa aberta no verão, mesmo que no bairro tenha tantos assaltos e ele saiba.
  Não é pelo arroz e feijão que ele não come todos os dias nem pelo pão de queijo que ele acha gorduroso. Não é pelo carnaval que ele só gosta de assistir de casa nem pelos natais que ele não compra presentes. Não é pela singularidade dos seus rituais, cada um aprendido em um continente.   Não é pelos tijolos que ele sabe empilhar e com eles levantar paredes. Não é.

  Se eu gosto mesmo do estrangeiro é pela vastidão das suas possibilidades, pela sua vida que não se encaixa na minha, pelas direções que ele não me conta. Se eu me aproximo e ofereço as minhas muitas xícaras de café é porque ele não me escreve e nunca me chamou ao telefone; o estrangeiro não conhece a minha língua e evita usá-la quando longe.
  Se eu já amo o estrangeiro é pela decisão que ele não pede, pelos braços que não se abrem para me salvar, pelas cortinas que ele mesmo tira para lavar.
  Se eu escrevo sobre o estrangeiro e nunca mostro é porque ele não se importa; não me lê, mas me sabe, sem nem eu saber como. Se eu não aprendo o idioma dele é porque não saberia amar na língua que não é minha.

  Não é pelo que ele sabe, mas pelo que não sabe e não pergunta. Não é pela única banda que conhecemos antes de nos conhecermos e, ainda assim, ouvimos outras. Não é pela atriz que ele acha muito boa e eu nunca vi num filme. Também não é pelos livros que nunca dividimos, mas que ele olha a capa, pergunta se pode abrir e tenta ler as marcações. Não é pela leitura dele que nunca se aproximará da minha nem pelo Neruda que ele nunca ouviu falar.
  É pelo que ainda não sabemos; pelas perguntas que ele nunca me fará e eu não terei que mentir. É pela conversa que ele não começou em um ônibus, nem bar, nem fila de banco é pela seriedade do primeiro encontro numa capela no centro da cidade. É pelo menino do dedo verde que ele não leu e algum menino de um livro da escola dele que eu não li. Se eu amo o estrangeiro é pelo amor que eu não sei falar e não preciso; é pela continuidade que se existirá não sabemos responder se sim ou se não. Ninguém pergunta ou não ouviremos.
  Se eu amo o estrangeiro é porque não é preciso, justo nem certo que vá durar a amplitude de um mapa-múndi.



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