sábado, 4 de agosto de 2018

A anônima musa do pescoço em riste

   Silenciosas e inabaláveis musas, para sempre, em paz. Não têm dores na lombar, joanetes e os seus braços não ficam flácidos, porque elas são somente cabeças. Perfis paralisados nos colares de família.
  As musas dos camafeus são belíssimas e intocáveis. Não escutam os pedidos, não têm que atendê-los, porque não são santas, são só musas misteriosas e permanentemente caladas, sem milagres, sem procissões ou jejuns. 
  As figuras das mulheres dos camafeus  não ouvem mentiras, ofensas, não se desiludem, não têm crises de ansiedade, enxaqueca ou vitaminas deficientes. Não precisam tomar sol nem retocar o filtro solar. Não têm melasmas, acnes, rugas ou bigode chinês. Nunca tiveram que tratar das suas loucuras, não foram ao psicanalista falar das suas existências silenciadas e obscuras.
  Medos também não têm; de tarântulas, de perderem o emprego, de terem hipertensão na gravidez, de um homem na rua, no ônibus, no bar, na mesa de trabalho em frente à sua.

   As mulheres de faces polidas e imóveis dos camafeus não vão ao ginecologista, não sofrem pela pressão da maternidade compulsória, tampouco têm aparelhos reprodutivos.
  As moças estampadas em pedra preciosa estão, desde a antiguidade, olhando para um horizonte que nunca alcançam, mas também não querem, não podem querer.
  Não cozinham, não passam roupa, nunca estenderam uma calça jeans no varal, não lavam o chão, o banheiro, as feridas, as próprias e as do resto da família. Mas também nunca exploraram o trabalho de outras mulheres. As musas dos camafeus nunca sujaram suas mãos delicadas, mas também não as têm.
  Os perfis femininos, dos adornos muito antigos, não morrem de raiva, não sentem o amargor da injustiça em nenhum dos pontos da língua, não gaguejam quando estão nervosas, não têm palpitações enquanto esperam. As musas sérias dos colares, em toda a história, nunca esperaram por nada.

  As mulheres estampadas dos camafeus não sorriem, nunca olham para trás. Estão salvas dos conflitos, da fome, das pestes, não estiveram em perigo nos incêndios, nos naufrágios, nas grandes batalhas. Não foram obrigadas a se casar, não tiveram vinte um filhos e morreram muito idosas, aos cinquenta anos.
  As musas dos camafeus foram à opera, ao teatro, aos saraus, mas não puderam derramar lágrimas ou suspirarem pela beleza; porque as senhoritas misteriosas não têm coração, garganta ou pulmão. Não são tomadas por paixão de nenhuma espécie, mas também não ficam vulneráveis e submetidas a elas. As moças de perfis clássicos, eternizadas em material duro, não sentem contrações de parto, cólicas menstruais, mas também nunca sentiram os seus corações palpitarem de esperança ou capotarem de ressentimento.

  As imperturbáveis mulheres sólidas, não sofrem de solidão, mas também não almejam solitude. As musas que Napoleão Bonaparte mandou confeccionar para a sua coleção, nunca foram amadas de verdade. Nunca foram, de fato, vistas, só superficialmente admiradas. Não têm alma, não têm família, não têm traumas, memórias felizes, histórias também não.
  A instigante mulher do camafeu nunca teve que tomar aulas de defesa pessoal, mas também não foi obrigada a fazer um plié com perfeição. Não dançou uma coreografia de forró, não pisou no pé do seu parceiro, mas também não teve que deixar a dança antes da música terminar e ir chorar no banheiro. A musa do camafeu nunca sentiu o próprio quadril.

  A mulher anônima de nariz arrebitado e penteado que deixa sua solidão aparente, não tem fome, não faz dieta, lipoaspiração, drenagem linfática ou resiste aos padrões estéticos doentios.
  As musas incrustadas nas pedras e penduradas nos pescoços,  não têm insônia, não têm que evitar refrigerantes com cola nem o café depois das seis da tarde, mas também não se alargam soltas em um colchão de molas no sábado pela manhã até muito tarde, consumindo todo o sono que o universo devia-lhes.
  As musas dos camafeus, da era vitoriana, têm os seus penteados eternamente preservados; não sentem o vento, não se molham na chuva, não se assustam com os raios, não correm porque precisam fechar as janelas, abrir a porta da cozinha para o cão e desligar os aparelhos elétricos. Mas elas também não conhecem o prazer de pentearem os cabelos antes de se deitarem e tê-los bagunçados por algum sopro mais forte de felicidade.

  As elegantes mulheres, lapidadas nos camafeus, não sentem inveja, ciúme, não gritam de cólera, mas também não sussurram de prazer ou alegria inesperada. As faces neutras, das mulheres admiradas, atravessam gerações sem mudarem o lado do perfil, sem afinarem a sobrancelha, errarem no corte ou tintura do cabelo, sem nunca terem que usar um chapéu para encobrir um deslize ou criarem uma personagem.
  As musas dos camafeus não assinam promissórias, contratos fraudulentos ou confissões manipuladas, mas também não elaboram bilhetes de despedidas ou declarações emocionadas. As musas, sem mãos, nunca escreveram no papel sulfite azul os nomes que não têm. 

  São muito apreciadas as damas de perfis luminosos. Outras mulheres também ostentam musas, mas só os homens as colocavam nas suas armaduras, vulneráveis à guerra; as primeiras a serem feridas em caso de um combate intrincado. As musas dos camafeus não sentem dor, medo ou o frio da espada fincada no seu pescoço em riste tão nu; também não são tocadas por coisa alguma, porque estão eternamente adormecidas nas frias pedras preciosas, como estiveram nos firmes metais dos soldados.
  A anônima musa do pescoço em riste não é mais triste porque não sente, mas é somente meia face de mulher, porque não tem escolha.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 11 deste agosto triste de 2018

Prezada profª
Amanda Machado
MD relatora do universo feminino

Seu texto fala por si, dispensa comentários. Mas acabei percebendo nele a questão do simbólico sobrepondo as relações humanas (o que é real?) e como isto adentra no processo complexo de imagética mental, considerada hoje a grande evolução cognitiva do século XXI.

Você manobra com maestria este simbolismo estrutural, a forma das representações que ocorrem com a explosão cibernética, e vai além ao apontar as falhas conceituais na teoria da afiguração implícita no modelo do que é ser humano.

Só para ampliar onde seus textos me permitem ver, digo que os sites mais visitados hoje no mundo todo (por todos os sexos e faixas etárias) são os pornosites, que não retratam a realidade, que só agora sei determinar, são sites camafeus, com mulheres-camafeus - gostei disto, e então a mulher camafeu apenas deixou de ser esculpida em pedra para ser reproduzida numa singular exposição irreal, surreal, que traduz esta loucura toda que é empurrada olhos a dentro das pessoas, quer pela violência (feminicídio) exposta midiaticamente até se tornar normal. (sim, a mídia expõe para que as pessoas acabem achando aquilo normal), quer pela vulgarização do sexo.

Eu ia escrever apenas um parágrafo e acabei abusando do seu tempo. Mas, para concluir, recorro ao (neuro) linguista americano George Lakoff que traduziu estes "camafeus" de uma forma magistral, que pode ser compreendido no seu livro “Não pense num elefante”. Ele convidava a não pensar sobre aquele animal, o que é exatamente o que você está a fazer neste momento.

O filme "A Origem" com o Leonardo DiCaprio, foi baseado em Lakoff.

Um abraço,

Paulo



Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 11 de agosto do torturante 2018

Caro Paulo
Leitor/ interlocutor de riqueza referencial extraordinária e sensibilidade fantástica

Sim, está tudo aí no seu comentário-luz! Os feminicídios, as violências, as patologias psicológicas relacionadas ao gênero...sem dúvida, estão muito atrelados ao tratamento dado pela mídia, cujo padrão, ainda, é o desumanizado.
Concordo, plenamente, com você e com Lakoff (que não conheço, mas já considero).

Não me poupe nunca dos seus parágrafos, por favor! São essenciais, aqui, cada palavra! É muito enriquecedor, cada um deles.
Abraços