tamanho maior, emoldurou em um dourado fosco e pendurou o quadro na parede da sala deles, antes dela chegar.
Talvez ele tenha falado sobre como eram felizes quando se mudaram com quase nada para o apartamento de um bairro que começava com eles, no meio do nada, afastado de tudo, onde ninguém quis ir por muito tempo.Talvez tenha relembrado, numa conversa, encostado na geladeira, enquanto ela fritava os pedaços de frango, passados na farinha de trigo e na de rosca, quando desciam a rua de mãos dadas e ele colocava as mãos geladas dela no bolso dele e mantinha-as quentes até se separarem, quando ele tomava o ônibus.
Talvez tenha falado sobre o quanto era difícil uma infância com os pais separados e depois, a mãe sozinha criando ele e os irmãos.Talvez tenha falado de como os próprios filhos eram pequenos e da dificuldade que seria manter duas casas.
Talvez ela tenha visto o quadro pendurado e tenha achado tardio e lamentável um prego na parede quando precisariam vender o apartamento; talvez nem tenha notado o dourado fosco do contorno. Talvez ela tenha esperado demais que alguém a visitasse no apartamento tão longe, no bairro onde a sua vida era desassistida de olhares familiares e conselhos maduros.
- Se eu tivesse com quem falar àquela época.
Pode ser que enquanto fritava os pedaços de frango e o homem falava encostado na geladeira sobre como ele aquecia as suas mãos, ela tenha pensado nas vezes em que as mãos dele esfriaram a sua alma. Pode ser que se lembrasse de quando ele entrava no ônibus, suspirava de alívio, porque tinha algumas horas sem medo.
Talvez ela tenha pensado que os filhos a mereciam sorridente e corajosa, como tinha sido antes deles a conhecerem.
Pode ser que ele tenha pintado a casa na cor que ela sempre quis, quando ela foi passar o final de semana na casa da mãe, tenha consertado a porta empenada do armário da dispensa, colocado o corrimão na escada da frente, muito íngreme, trocado os dois pisos quebrados do chão da cozinha, comprado um novo colchão para cama deles e colocado a cortina, que ela havia comprado há um ano, no quarto das crianças.
Talvez ele tenha começado ir à igreja, tenha se oferecido para alguma leitura, tenha recebido de cabeça baixa as penitências no confessionário. Talvez ele fizesse café para as visitas, sorrisse muito para elas e parecesse um homem esforçado e simpático, talvez elas nunca acreditassem que não era amor ou que se não fosse, era algo que bastaria naquela lonjura de deserto. Talvez dissessem que era uma fase e que era assim mesmo.
Talvez ela tenha voltado para casa e já não gostasse mais de azul, porque ele tinha colocado suas mãos pesadas no azul celeste dela. Pode ser que a porta do armário não fizesse mais diferença, que as crianças estivessem crescidas e já soubessem se equilibrar na escada. Talvez o chão da cozinha com os pisos quebrados se parecessem mais com o que ela era agora; o piso novo era um remendo, um engano. Pode ser que o colchão fosse macio demais para vida dura dela e a cortina, finalmente colocada no quarto das crianças, dificultasse no dia em que ela precisasse acordá-las bem cedo, caso tivesse urgência.
Talvez ele enganasse o pároco e a comunidade. Pode ser que conquistasse mais admiradores, entoando os hinos com a sua voz gravíssima, mas os santos não se enganariam. A santíssima trindade e a mãe misericordiosa sabiam dele, até antes dela.
Talvez quando nomeassem o que ela vivia de fase, ela aspirasse o ar de esperança e expirasse de desistência.
Talvez eu a tenha visto levando o homem sorridente até ao portão e voltando para casa, para sacudir os tapetes e a tolha de mesa nas janelas, com um rosto cansado e de medo. Talvez eu a tenha visto muito, da minha janela, para não conseguir esquecê-la.
Pode ser que eu a tenha visto contando moedas para o leite na padaria, com o cabelo num coque que ela improvisava todos os dias e tenha achado-a bonita e muito triste. Talvez eu a tenha visto consolando a menina que chorava porque desamarrou o sapato, porque o cachorro latiu, quando ela passava encostada no portão. Pode ser que eu a tenha visto perguntando ao vendedor, da janela do caminhão, o preço do gás, enquanto empurrava o menino pequeno no carrinho de bebê. E pode ser, também, que eu a tenha visto achar caro o gás, o leite, o arroz, o algodão doce que a menina chorou tanto para ter e não reclamar de nada, nunca, com ninguém. Talvez eu a tenha escutado começar um pedido e alguém a interromper, por medo.
Talvez eu a tenha visto suportando, segurando as crianças e consolando-as do terror da voz noturna; que não entoava hinos. Pode ser que eu a tenha visto escondendo o olho roxo, o braço quebrado, o corte no supercílio, os lábios inchados bem mais de uma vez e nunca tenha entendido o porquê dela não fechar a casa e tomar um ônibus.
Talvez eu a tenha visto passando por julho, esperando por agosto, depois setembro e só ano que vem, quando as crianças poderiam mudar de escola. Mas o anos não se concretizaram para ela; eles passavam como nuvens que ela nunca conseguia tocar.
Pode ser que eu tenha entendido tarde demais ou cedo os olhos molhados da vizinha; nunca saberei. Nunca dissemos nada, além das horas e dos cumprimentos diários.
Talvez eu nunca a tenha visto ir, mesmo, embora. O que manual, livro de capa verde de autoajuda nunca explica é como ir embora depois que alguém pede para ficar. O ascendente em escorpião e o sol em virgem não são suficientes para desvendar como alguém suporta tanto sem deixar de ir à padaria.
O que ninguém alertou é que não bastava malas prontas, passagem comprada e vida nova sonhada, quando uma voz acompanhada de pares de olhos desesperados disse:
- Fique. Não vá embora
Talvez ele tenha chorado. Foi o que sempre pensei. Ou talvez porque ele nunca o tenha feito ou porque tenha prometido nunca mais fazê-la chorar. Eu não sei. Mas, talvez, ela nunca tenha ido embora. Nunca disse adeus à casa, ao quadro, às cortinas, ao colchão, ao corrimão, ao piso remendado, ao armário arrumado e depois com a porta agarrando de novo, ao azul que nunca a fez feliz. Eu ainda a vejo de coque bagunçado em outras padarias e acho que se um dia vi a tristeza bonita é porque era nela. Talvez ela tenha conseguido segurar alguma nuvem que me tenha escapado nos dias da janela; pode ser.
3 comentários:
Minas Gerais, calvário de agosto de 2018
Querida Amanda,
Há no Talvez uma das mais profundas provações de dor da alma. O condicionamento da felicidade é quase insuportável, releva-se e não revela-se (aí está o demônio da tentação de achar que se pode voltar e consertar - não, não pode) os sentimentos que habitam as sombras e a luz do coração.
Seu texto é de um escancaramento - das cicatrizes não fechadas - assustadoramente real.
Um abraço
Paulo
Minas Gerais, 03 de agosto de 2018
Delicado e sensato Paulo,
certo, muito certo...como sempre! A dor dos "senões" é dilacerante e, possivelmente, é nela que mora a intranquilidade de todo universo.
Obrigada pelo café nesta sexta incrivelmente gelada.
Abraços,
Amanda
Minas Gerais, 03 de agosto, noite fria e com garoa fina
Amanda,
Abro este espaço para agradecer pelo envio dos livros. Confesso que entraram na fila, e fila de livro é coisa séria, senão uma coisa não leva à outra.
Há priscas eras li Os Pilares da Terra e agora estou na continuação Mundo sem Fim, do Ken Follet, e paralelo a isto os livros e informações técnicas da sobrevivência em vida.
Li as dedicatórias, claro, fiquei me achando o cara que tem seus livros autografados! Muito obrigado. Este agosto é curto, mas como dizia eu para mim nos momentos de crise, esqueça Chronos e abrace Kairós, que você acha o tempo do tempo. Mas isto é prosa fora desta curva, digo, desta carta.
Um abraço, e puxa vida, adorei o Drummond, que eu não conhecia.
valeu
Paulo
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