domingo, 12 de agosto de 2018

O dia em que o sábado teve cheiro de mexerica

   O barulho começou demasiado cedo para um sábado e se prolongou demais para uma manhã. Antes das sete, eu ouvi os primeiros passos na escada lá fora. Voltei a dormir depois que me acostumei com os pés transeuntes, mas acordava, de novo, a cada objeto que caía e rolava pelos degraus que eu pisei ontem. O gato também se incomodou e me levantou para eu abrir a porta mais cedo, tentei fingir não escutá-lo algumas vezes, mas ao gato eu nunca minto por muito tempo; ele conhece cada truque meu, ele me submete por amá-lo. Abri a porta dos fundos e ainda tentei voltar para a cama, mas o sol lá fora, o barulho começado há mais de uma hora e o cheiro de café da varanda vizinha, me despertaram para sempre neste sábado.
  Coloco a água para ferver, enquanto vou à porta da frente, investigar os movimentos que me lançaram da cama tão antes do que eu gostaria. Do buraco com a lente riscada, na porta, vejo alguns carregadores e os vizinhos do apartamento a dois andares acima do meu, os donos dos passos.

  Caixas de diferentes tamanhos empilhadas no hall do prédio,  uma bolsa vermelha brilhante bem em frente à minha porta e os vizinhos que sobem e descem, sempre, com as mãos ocupadas. Não sabia da mudança, não sabia que iam embora, não lamento nos primeiros minutos. Vou até a cozinha desligar a água e passar o café e só quando a água encontra o pó sou, realmente, despertada:
- Ah não, eles vão embora.
  O casal mal me cumprimenta, não deixam a porta da entrada aberta se me veem descer, não separam o lixo reciclável, nunca estão nas reuniões de condomínio ou devolvem rapidamente as correspondências que não são deles, estacionam na minha vaga, mas têm as crianças e elas farão falta aos meus dias. Os últimos pingos de café se ajeitam na garrafa, enquanto eu penso que as crianças não estarão aqui amanhã. Logo no domingo, quando a menina vai cantando até à garagem e menino desce as escadas contando os degraus em inglês, depois do dez ele recomeça a contagem, ainda não o ensinaram o eleven.

  O menino com o humor do pai, oscilante, indisposto pela manhã, aflito nos dias de jogo, noutras vezes sorridente e, em todas as vezes, muito curioso, cujos olhos profundos de um azul que só vi em outros tempos, noutras vidas que já não me olham mais será a partida mais doída. Vou sentir falta dele e o meu café não parece tão forte quanto eu gostaria, mas tomo três xícaras, antes de voltar à porta e assistir a mais uma dezena de caixas serem carregadas. Vejo alguns rostos, mas muito mais braços e pedaços de vida desmontados, separados, quebra-cabeças de quase dez anos no apartamento em que eu nunca entrei.
  Pretendo mudar de roupa e me despedir, embora não saiba o que dizer, perguntar ou desejar, mas deixar que vão embora sem nem abrir a porta é indelicado demais, frio e eu queria ver os olhos de céu uma vez mais. Antes de procurar a roupa, chego à janela e de lá vejo as existências-matéria desmontadas e expostas na calçada, enquanto os cinco pares de braços tentam colocar no caminhão a as memórias de quatro vidas.

  Da janela do quarto, vejo as cadeiras com estofados de estampas geométricas, a bolsa vermelha brilhante, que há pouco estava ainda em frente à minha porta, em cima de duas delas, um lustre, sacolas, caixas com a frase "este lado para cima" de cabeça para baixo, penso em alertar, mas as três xícaras de café não despertaram a minha voz.  Mas das coisas todas dispostas na calçada, das despedidas que não são minhas, mas que me acordaram e me deixam melancólica na janela da frente, a mais sentida é a visão que eu tenho das duas crianças na calçada.
  A menina, vez ou outra, se levanta e vai até o caminhão ver as coisas que ela sempre conheceu inteiras, sendo desmontadas e colocadas num lugar tão menor que a sala da casa dela. Sorri, mexe com os cães da rua e, às vezes, atrapalha a passagem de algum dos braços com as caixas; é repreendida, não liga, não responde e volta a sentar-se ao lado do irmão.

  O menino não se move, não sorri, mas também não reclama e me parece uma sorte seu humor tão alentado na calçada hoje.
- Melhor assim, que os pais não brigam.
  Falo ao gato que já se instalou na nossa janela ensolarada. Tudo é movimento próximo ao caminhão de mudança, só o menino não. O menino é constância, observação e uma mexerica saboreada calmamente.
  Só ele para assistir, sem esforço, o seu mundo caber na pequenez do caminhão-baú, só ele para se sentar ao lado da mochila verde,  de dinossauros, e contemplar a vida dando um passo incerto do qual, talvez, um dia ele se lembrará.
- Quem é você?
  Foi a frase dele mais recorrente na nossa relação distante, mas duradoura. Ele a fazia quando ainda nem havia a irmã e o seu vocabulário era muito menor do que é hoje. Eram dias seguidos de "quem é você?" e eu sabendo a cada dia menos o que responder. Respondo o mesmo que disse ontem?  Pergunto sob que perspectiva é a questão? Só sorrio e não falo sobre o que eu não tenho certeza? Invento alguma resposta boa de ouvir e rápida de ser aceita? Eu nunca soube quem eu deveria dizer que eu era ou quem eu era, de verdade, na frente dele.

  Os olhos farão falta, os números em inglês, a narração dos gols que ele fez no dia, mas sobretudo, o "quem é você?".
  Ele leva à boca mais um gomo de mexerica, a irmã arranca a flor do jardim do prédio em frente e tudo o que eles têm coube, finalmente, no baú de um caminhão alugado. Sinto o cheiro da mexerica nas minhas mãos, meu cabelo, no apartamento inteiro e imagino que a mudança da qual ele se lembrará terá esse cheiro também. Quem sabe?
  Um sábado recém começado e as crianças do apartamento, no qual eu nunca entrei, não farão mais parte das minhas semanas. Eu sinto saudades antes do caminhão partir. Eu vi sua cabeça careca, seus olhos quase nunca abertos, seu dentes nascerem e alguns caírem, eu vi seus olhos profundos de azul e fiquei muito desestabilizada a cada pergunta, mesmo que fosse a mesma durante anos. O quanto dele ficará em mim, além do cheiro da mexerica que há doze horas eu sinto por onde ando?

  Ele limpa as mãos na bermuda, olha para mim na janela, deixa dois gomos intactos da fruta em cima da calçada, junto com as cascas, balança a mão para mim, enquanto sorri muito cheio de esperança e entra no carro para eu nunca mais tê-lo no corredor da minha vida.
  Ele nunca mais vai me perguntar quem sou eu, mas vou tentar me lembrar de respondê-lo todos os dias, mesmo assim. E, certamente, vou me lembrar do dia em que o sábado teve cheiro de mexerica e o som dos passos que vão embora. Doze horas depois e ainda tem o cheiro.
  Vai ser difícil não ter alguém que me pergunte, mas vou para sempre aceitar que a resposta talvez nunca chegue, isso eu aprendi com o menino que, ainda ontem, morava a dois andares do meu e, agora, só mora atrás do meu espelho de interrogação.


2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 20 deste grotesco agosto de 2018

Prezada contista, ensaista, pacifista e aguerrida
Amanda Machado

Quem é você? Que conto, hem! Das coisas, das mudanças, da esperança que venceu o medo ... que covardemente voltou para soçobrar a paz.

Muito bom, muito bom!! Por hoje é só.

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 21 de agosto de 2018

Caro Paulo,
fiel alinhavador das tapeçarias mais miúdas

Que bom que gostou! Muito grata pela sua delicada leitura.
Abraços