nem água, nem areia do deserto, nem basalto, nada, nada no domingo. Olheiras expostas, janelas abertas, portas trancadas.
O interfone toca e a voz que poderia ser a minha, se não estivesse muda, diz bom dia; não pede para entrar; não há donos para esta casa.
- É bom não ser dona de nada no domingo.
O molho de chaves na fechadura é pesado e faz barulho; tantas trancas para quem não tem nada. A presença é tão loira quanto o sol no tapete da sala, mas não é pálida como o cansaço que abre a porta. A tevê está ligada, a água ferve no fogão, os ingredientes para as duas medidas da receita já estão separados na pia.
Quebrar os ovos, misturar a farinha, acertar o sal e amassar as batatas; um par de mãos amassa e o outro coloca mais farinha.
- Mais. Mais um pouco. Espera. Pode colocar mais...espera!
Outro par de mãos faz o molho: cebola, salsa, azeite, tomates.
- Sem pele e sem sementes, cortados em cubinhos.
Uma voz na porta explica.
Parece que sempre estivemos fazendo esse almoço. Nada antes ou depois, nenhuma vida lá fora que fosse mais importante que a massa e o molho. Mesmo assim, ainda estou vazia.
- Talvez depois de comer, melhore.
Leva ao forno.
- Num refratário bonito, leve ao forno por vinte minutos: uma camada de massa e outra de molho, repita a montagem, termine com o molho e finalize com o queijo ralado na hora.
A outra voz imita um programa de culinária. Sorrimos. Parece que todos os domingos estivemos nesse programa. Retira do forno, leva à mesa, os pratos brancos sobre toalha vermelha, guardanapos de papel, três latas pequenas de refrigerante.
- Não comprei o vinho.
A voz muda não disse, mas todos entenderam a falta da bebida. Parece que nunca precisamos de vinho.
Sentam-se os quatro. Não sei se os outros três estão vazios, mas eu estou e encho o prato.
Foi no domingo à tarde, hora do almoço, com o prato já servido, duas ou três garfadas à boca. Prato mexido, dentes com fiapos de frango, molho vermelho na camiseta, que tem um furo mínimo.
Foi no domingo, dia dos pais, segurando uma concha, passando a salada, pedindo o azeite e quando estava muito, muito vazia o telefone tocou. O refratário ainda quente e o queijo derretido, antes de uma da tarde, sol de agosto queimando lá fora, a tevê que ninguém assiste ligada, cheiro de almoço na casa ao lado.
No domingo de meio copo de refrigerante, três vozes disputando a última piada, frequentado pelas memórias que nem sempre são minhas, mas nas quais quase sempre estou, prato quente no meio, comendo pelas beiradas e o telefone tocou.
- Não atende. É hora do almoço.
Mas ninguém consegue se ausentar como eu. Uma das mãos alcança o telefone.
- Sim, está. Vou passar para ela.
Logo eu, tão muda, preciso falar ao telefone. E a voz veio, a vontade de ouvir também. Vou atender longe da tevê. Entro no corredor e escuto tudo em frente ao espelho.
Na estreiteza de um corredor, em que meus braços nem caberiam abertos, em frente ao meu reflexo, com os dentes sujos da comida de domingo, o cabelo de ficar em casa, que é o melhor dos penteados, tenho achado - ainda que não para o espelho - e a única frase que eu busquei, sem nem saber, a vida inteira.
Sem olheiras, sem palidez, sem a mudez e o cansaço do domingo, só o rosto iluminado em frente ao espelho, no corredor apertado. Alegria sem esforço, sem preparo; alegria quase ignorada, se os outros não a tivessem salvo.
Será uma profecia cumprida, um destino sentenciado ou um regalo ao acaso, aquilo que veio pelo telefone?
O que fazer quando, finalmente, num domingo, todas as semanas são subitamente preenchidas? O que fazer com as mãos, com o prato, com os espaços vazios que em cinco minutos passam como todos os outros domingos?
É só um começo de almoço quente e outra metade do prato frio na mesa.
- Então era isso.
Entendimento e completude que duram do caminho do corredor até à sala. Nada falta neste instante.
Tão disposta para um domingo, tão falante para um almoço com massa em molho vermelho, tão transbordante de uma abstração sem nome. Íris brilhantes, janelas e portas sem trancas. Tão descoberta para uma manhã morna, nunca mais vazia, até o domingo acabar.
Dentes sujos no reflexo do espelho, sorrio sem mentira:
- Sou eu quem agradeço. Para você também.
Sento-me à mesa, levo o garfo à boca, puxo o copo de refrigerante e engulo todo o entendimento que chegou pelo telefone fixo, numa voz desconhecida há muito.
O que eu faço com tudo isso agora? Renovo os sonhos, devoro toda a massa, sem demonstrar o quanto eu já estou cheia ou dou por definitivos e muito bem-vindos os telefonemas de domingo? Que alguém sempre salve os domingos, cujas chamadas eu rejeitar.
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