quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Flores em tempos bélicos

  Durante as guerras há muito mais do que feridos e mortes. Há bombas, armas, trincheiras,explosões, despedidas solitárias, uniformes sujos de um sangue que talvez ainda saia do tecido. Mas existem as cartas, os sonhos atados ao peito, que bala nenhuma é capaz de atravessar. Há o desejo dos reencontros, as lembranças dos dias comuns: da xícara com café, dos pratos sujos na pia, das cortinas serpenteando com o vento e derrubando uma jarra com flor, de uma canção abafada pelo chuveiro, do despertar morno dos domingos, da casa cheia e do degrau da porta da cozinha, do qual sentada, via o mundo que tinha. Há, também, muitas  palavras, as silenciadas, as sonhadas, as ditas, as escritas e as evocadas; de consolo, de esperança ou que apenas ocupem os silêncios entre os gritos de horror e os  suspiros das iminentes partidas. 

  Durante a segunda guerra as soldadas russas menstruavam, casavam-se de vestidos brancos feitos de bandagens economizadas, tinham filhos e pilotavam aviões, enquanto os seus bebês ficavam sozinhos em casa. Soldados brasileiros amavam e tinham filhos com as italianas, depois, podiam ser alvejados sem nunca verem seus filhos e os kamikazes tomavam banho antes de entrarem nos aviões.
  É assim: a vida abundante, tantas vezes, só é percebida depois de eclodirem guerras; um tapete na porta de entrada de uma casa qualquer pode fazer chorar de saudade. Terminada a guerra, tenta-se juntar os restos, varrer toda a sujeira e reconstruir o que ainda é possível; embora os tijolos novos e as pinturas recentes tenham também o rosto da guerra. E os gestos, as palavras, os olhares parecem forjados a se esquivarem das lembranças doloridas dos campos de batalha. A guerra nunca termina para muitos.

  Durante os combates, a vida não tem uma pausa longa como parece; durante as guerras também se vive e às vezes a guerra nem é o assunto das conversas durante a refeição. As paredes racham, amigos desaparecem, muitas cartas não são entregues, mas os cabelos ainda são penteados todas as manhãs.
  Os soldados abrem fogo contra o inimigo, arrasam cidades sem nem tê-las conhecido, arrastam o colega ferido por quilômetros, o deixam pelo caminho quando param de respirar, depois de terem tirando-lhes a bota e recolhido isqueiros, cantil e algum cigarro, ou carregam até a enfermaria, quando têm sorte, depois, voltam para os alojamentos e escrevem cartas perguntando sobre a saúde do cão da família.
  A soldada russa foi penalizada porque colocou uma pequena flor no cano da sua arma. A atiradora russa ainda gostava de flores, durante a guerra. O comandante não queria que ela se permitisse à vida, só essa flor ele pode condenar, porque não viu que ela florescia debaixo do uniforme.

  Durante o medo, a coragem não abandona; ambas coexistem, ora o medo fala um pouco mais alto, ora a coragem manda-o calar. O medo estimula a coragem, o medo é a mãe da coragem.
  Depois de desafiar a altura, as distâncias, as ameaças, os golpes e as investidas do fogo inimigo, a coragem se cansa e o medo se aproxima um pouco; mas logo a coragem retorna e resiste.  Então, um estado de completa plenitude se instala, ainda que saibamos temporário, soltamos os braços e esperamos que não acabe. A coragem, mesmo cansada, não abandona o medo sozinho, fala mais baixo, mas não se cala; afasta, mas não vai embora; a coragem é mais delicada e resistente do que o medo. 
 Medo e coragem vão à guerra, dizimam e protegem, abalam e acolhem, tomam água em um mesmo pote, dividem prato, cama, dores, nostalgias, histórias e trincheiras.

  Quando apagam as luzes e o espetáculo começa, toda fealdade é abrandada, fica longe. O medo, o fogo trocado, as flores desperdiçadas, as lembranças de antes da guerra, a saudade do comezinho, as manchas de sangue nas botas, roupas, cartas; tudo fica menor com a beleza da arte. 
  Uma atriz de meia arrastão se equilibra numa bola, enquanto as vozes sussurram perigo e disfarçam inveja da sua liberdade e eu me lembro da soldada russa no campo de batalha com a flor no cano do fuzil; lutar dói e é bonito. Viver é; resistir é.
  Quem lutou mais, atriz ou soldada? Quem cairá primeiro? Qual delas receberá medalhas no fim da batalha? Nenhuma. As soldadas russas só eram condecoradas se perdessem as pernas, as atrizes de meia arrastão não são sérias, pensam.

  Do lado de fora, os poemas pendurados no varal, de noite, no escuro, palavras sozinhas depois do terceiro sinal. O vento balança as folhas com Galeano, Brecht e numa delas tem o meu nome; torço para ser arrancada do varal e sobrevoar a cidade, junto com Galeano e Brecht ou sozinha, se a estratégia for essa. Guardaremos a cidade.
  Às vezes respira-se mais profundamente na turbulência de um ataque, enquanto sonhamos com outra coisa que não seja vento; inspiramos vida, expiramos luta. O que faz sentido agora não dura para sempre, mas me sustenta plenamente nesse agora possível. Quando eu vou à guerra, escolho a flor mais bonita e coloco-a no cano da minha arma. Em tempos bélicos ainda existem flores; os tempos bélicos precisam, ainda mais, das flores.




4 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 28 de setembro de 2018

Prezada escritora, contista, poetisa
Professora Amanda machado
Digna representante da humanidade que habita em nós

Seu texto, vou ousar falar dele, apesar de ser explícito. Fala do Desejo, da vida, da morte, do medo e da coragem.

Há nele um ingrediente novo nos seus textos - a Memória do Futuro. Gostei de identificar esta situação nos sonhos das cartas do quando eu chegar. A Memória do Futuro é onde habita a Coragem, que dá sentido à vida, dá cor ao mundo, sabor aos temperos dos sonhos.

A memória do passado é a única que nos é ensinada. A que dá medo, dá dor, dá angústia e tira o sentido da vida.

No que tange a esta sua peregrinação neste labirinto do desejo, cerceado ou alimentado, é o que me chamou a atenção. No mais, texto sensacional. Por hoje é só, menos prolixo, aprendendo com você a ser objetivo, deixando as entrelinhas ao outro. É difícil, muito difícil mudar, mas com determinação a gente muda.

Um abraço

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 28 de setembro deste improvável 2018

Querido Paulo
Leitor gentil
Conselheiro sensato
Comentarista aguardado
Consultor de livros, filmes, autores e humanidades...

se há um lugar que a loquacidade é muito admirada e bem recebida é este bloguezinho...
Tem razão (como sempre) sobre os aspectos que o texto busca tangenciar... entre eles a resistência e a esperança. Sobre este último, Emily Dickinson poetizou lindamente:

Esperança é a coisa com penas
Que se empoleira na alma
E canta um som sem palavras
E nunca, mas nunca, para,

E mais doce é ouvido no vendaval;
E dura precisa ser a tempestade
Que poderia desanimar o passarinho
Que mantém aquecidos a tantos.

Já o ouvi nas terras mais geladas
E nos mares mais estranhos,
Entretanto nunca, mesmo no desespero,
Ele pediu uma migalha a Mim.

Abraços,obrigada pela visita sempre tão terna

Paulo Abreu disse...

imensurável poema!

Amanda Machado disse...

Sim! ;)