sábado, 29 de setembro de 2018

O amor possível com um colar cervical

    Eu não me lembro quando foi a primeira vez em que os vi, talvez porque não soubesse que os encontros seriam recorrentes, tampouco significativos, então, só os vi passar.Não me deixei ser mobilizada, ainda, pelo que eles já eram. Passaram todos, levantaram a brisa que me acompanhava, a qual só se assentou e voltou a me cercar alguns metros depois e foi, possivelmente, assim o nosso primeiro encontro.  Como em tantas outras histórias, que não me ocorreu de guardar a memória primeira, porque só foram importantes aos poucos, tão sutilmente se integraram aos meus dias, que nenhum início demarcado reivindicou importância.

   Todos os dias antes das oito da manhã, eles caminham desorganizados, barulhentos, interrompem a monotonia da avenida mais cheia de carros do que de pedestres,  atravessam as ruas, puxando uns aos outros pelas mãos, até o pedido para que parem para um deles amarrar o cadarço do seu tênis, voltar para pegar algum objeto que caiu ou só requisitando alguns segundos de atenção. Nossos encontros, sem espera, sem busca, sem compromisso de retorno ou horário agendado têm me alimentado tanto que eu nunca mais me mantive ignorante sobre as suas existências; nem fome, nem sede, nem vazio tenho sentido.

  Há mais de seis meses eles circulam desafiadores e calorosos pelas mesmas ruas por onde passo. Há mais de seis meses tenho sentido o ar contaminado pela energia inusitada deles.
  São quatro pessoas, três mochilas e algumas sacolas. São quatro pares de pernas, quatro mãos dadas de um lado e duas do outro. São quatro vozes, quatro vontades, quatro aventuras diárias de três pescoços móveis e um imobilizado. São três crianças pequenas e um pai que não pode se abaixar, se virar ou olhar para o caminhar dos seus filhos. Um pai com a cabeça que é estritamente orientada pelo movimento do corpo, um homem cujo pescoço preso a um colar cervical, da mandíbula até os ombros, tem os três filhos pequenos  se locomovendo apenas pelos olhos dos irmãos e pela voz paterna que só ecoa de cima.

  Nos primeiros encontros, pensei que a condição física limitada do pai demorasse apenas por mais alguns dias ou semanas, achei  que a desordem andante e arriscada da família seria uma experiência curta e passageira. Mas já os vejo a mais de um semestre  e o colar ainda é um acessório que parece indispensável ao adulto responsável pelo trânsito de outras três vidas, além da própria. A criança maior, um menino, parece não ter mais do que seis anos, há a menina que talvez tenha quatro e um outro menino, o mais agitado dos três, que deve ter uns dois ou três anos.
  Nas primeiras vezes em que passei por eles, pensava como  se organizavam antes de chegarem à rua, se era o pai que arrumava suas mochilas, ajudava-os com o banho, se fazia o coque no cabelo da menina ou como ele mesmo calçava os próprios sapatos. Imaginava  se a mãe ou outro responsável pelos três pescoços moventes ficava em casa ou seguia para o trabalho e o pai se responsabilizava por somente esta tarefa: a de levar os filhos à escola.

  Mas, agora, tenho pensado menos no tempo que o colar durará no pescoço do pai e na rotina que antecede aos nossos encontros. Tenho me concentrado mais nos quatro, carregando mochilas, dividindo sacolas, arrastando coragem, sorrindo aos transeuntes, brigando uns com os outros e atravessando bem na frente da negligência dos motoristas. Quatro sorrisos, gargalhadas infinitas, repreensões que vêm de cima e se espalham entre três crianças muito pequenas, mas solidárias entre elas e com o pai, cujas limitações elas se habituaram, porque não parecem estranhar, mas que só pode vê-las do seu um metro e setenta e três, ao menos enquanto caminham.
  Ele não vê os rostos dos filhos que a minha brisa acaricia levemente, não enxerga as faces de susto, quando uma buzina dispara, alguma coisa cai das mãos de um deles ou os cães pelos quais os olhos deles brilham nem as poças de água que eles, sorrateiramente, espalham com os pés. O pai não vê muito, mas confia; as crianças não são guardadas pelos olhos fixos, mas se sentem protegidas.

  Há  mais de seis meses uma dignidade de amor que confia atravessa as mesmas ruas pelas quais eu busco sentidos. Há mais de meio ano a integridade dos laços e a inteireza dos afetos, desafiados pela limitação de alguma fratura na cervical de um homem que atravessa alguns quilômetros com três existências, as quais ele não pode ver completamente, me ensina que o caminho é tortuoso, vasto, cheio de ternuras incompreensíveis e só é ultrapassado diariamente por uma confiança que não  pode ver.
  O pai repreende, as crianças brigam, a joaninha da mochila da menina perdeu um dos olhos, o menino mais velho se distrai e quase perde a mão da irmã, que ele precisa segurar porque já combinaram assim antes de saírem. Eu não sei o que eles têm em casa, se mais alguém, se outras relações facilitadas pelos movimentos sem tantos limites. Mas, agora, quando os vejo sei que não se perdem mais por muito tempo; suas mãos sempre chegam no outro.

  Eu não sabia quando os percebi pela primeira vez, mas o que me prende a eles é, talvez, uma perspectiva privilegiada, que só alguém que está de passagem pode ter.  Essa ternura compartilhada, a dureza dos dias e a beleza que é o afeto que eles não veem, mas eu vejo. E que eles sentem sem saber que sentem; esta é a possibilidade que o colar não limitou.
  Talvez amor seja isso: pescoço imobilizado, crianças barulhentas, novos sentidos testados, atraso para a escola, quedas pelo caminho e uma noite dormida para repetir tudo de novo amanhã. Eu queria que uma só vez o amor tirasse o colar cervical e visse com o mesmo encantamento o que eu vejo sem me cansar. Onde eu só via risco e limitação;  tenho encontrado amor e amplitude de gestos.




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