quarta-feira, 3 de outubro de 2018

A perder um país, nos acostumamos

  Não reconhecer um país é uma dor a qual se acostuma. Nos acostumamos com as casas antigas que perdem os moradores e seus cotovelos na janela da sala, suas roupas no varal, seus baldes de água na calçada. Depois perde-se a cor das suas paredes, pedaços do reboco a cada ano, telhas, lembranças, até serem  engolidas pela vegetação e se tornarem inconvenientes demais para sentirmos saudades. Passam com uma retroescavadeira por cima dos cômodos que há muito não abrigam os sonhos e uma construção começa no dia seguinte. Não reconhecer um país não dói quando outro logo se instala com a promessa do novo, balançando junto às persianas das janelas altíssimas.
  Ás vezes não se reconhece um país por não estar nele há muito tempo, então passamos a ter em outro o costume que tivemos neste, agora, desconhecido. Todos, algum dia, não reconhecemos nem país, nem pátria, nem bandeira, nem laço, por dez minutos, por uma década ou nunca mais.

  Não reconhecer um nome é a gafe da qual quase ninguém está protegido. Esquecemos por alguma distração dessas em que as letras não se organizam no tempo certo de chegarem à memória, quanto menos à boca. Perdemos um nome, quando ele se confunde com aquele outro impregnado tão firmemente a razão, que não há lugar para nenhum outro.
  Outras vezes não reconhecemos o nome porque demos outro, intimamente, algum que nos faça mais sentido do que aquele ao qual todos os outros chamam. Não reconhecer um nome, às vezes, é ter uma construção individual de linguagem que não chegamos a partilhar com ninguém. Por proteção, por promessa ou esquecimento.

  Não reconhecer um corpo, pode ser uma libertação, o próprio, o do outro; conceber uma pessoa sem margens, sem delimitações. Não reconhecer um corpo pode ser a invenção de um novo ou o completo esquecimento dele por alguns instantes.
  Perder vinte quilos, depois que começou a correr ou ganhar quinze, em uma maternidade aguardada, são diferentes futuros que brilham na porta do guarda-roupas, no espelho que já ia se impregnando da imagem de um corpo que não é mais esse .
  Esquecer um corpo é a possibilidade de tê-lo mais próximo, porque não é esperado, visto, mas profundamente sentido, entrelaçado ao nosso, que já nem é mais só nosso - por alguns minutos.  

  Não reconhecer um rosto do passado, às vezes, é um trabalho imenso da própria psique, que nos afasta da dor da lembrança. Nenhum retrato falado poderá nascer daí; carregamos, involuntariamente tantas vezes, os traumas, a compreensão do dilaceramento, mas o rosto mesmo, a lonjura dos dias apagou, como uma onda engolindo o desenho na areia.
  Não reconhecer um rosto pode ser uma abençoada trégua para os pesadelos que se enchem de todo o terror, exceto o rosto; transfigurado em ausência permanente.
  Perder da memória um rosto pode nos salvar de tê-lo habitual, frequentando a multidão de desconhecidos, nas revistas, os astros da tela ou nos surpreendendo em um pensamento que vagueia às três da tarde numa quarta-feira.

  Não reconhecer um caminho pode ser uma sorte imensa; porque, perdidos, inventamos outra geografia que nos caiba mudados. Perder-se de uma trajetória pode ser o desfecho de uma caminhada compulsória, só por tê-la começado um dia e nos levar a uma outra escolhida pela força primeira do desejo de cumprir o que for possível dela.
  Não reconhecer um caminho anuncia que o caminhante talvez seja outro, modificado pelo próprio caminho ao qual se estranha agora. Um caminho não é definido ou definitivo, um caminho é uma trajetória de curvas, assimetrias, luzes ausentes em alguns trechos e outros muito iluminados, desabitada ou conduzida pelos alardes populares. Não reconhecer o caminho é uma das condições da própria experiência.

  Não reconhecer o que se escreveu um dia nos mantém certos de que a autora era uma e agora, talvez seja outra. Ou a escrita é essa entidade que nos visita no mistério da madrugada, deixa suas marcas, inscreve em nós suas memórias e parte, deixando a linha da assinatura para ser nossa. Não reconhecer uma escrita é ser seu leitor pela primeira vez; nenhum lugar é mais pródigo do que este de visitação e, até, apropriação de um outro, unicamente, pela disponibilidade da partilha..
  Não reconhecer um pensamento, um cenário, um personagem, surpreender-se com um desfecho e se reconhecer distante de um diálogo criado é a possibilidade de reinvenção e resgate de si.

  A perder um país, nos acostumamos, eu o perco mais a cada dia e insisto num novo depois de cada morte. Mas não reconhecer os olhos de quem muito se amou, não compreender seus discursos, as linhas sinuosas das suas falas, os labirintos das suas opiniões é uma dor imensa e dilacerante. Perder-se de um amor ao qual o mais fundo afeto frequentou é uma saudade terrível, porque inventamos muitos outros, mas a desilusão do desconhecimento nos acompanhará até o banho, ao supermercado, ao cabeleireiro, à consulta médica, à cabine de votação, às décadas  posteriores ao tombo.
  Não reconhecer mais um amor, do qual estamos ao lado, é a tortura ainda sentida, mesmo depois de trinta anos de ferimentos curados e denominada nos livros de "política rigorosa". O desconhecimento de um amado é a perda de um país, um nome, um corpo, um rosto, um caminho, um texto ou livro, todos de uma só vez. Desejamos boa-noite, nos viramos para o outro lado e descobrimos que na manhã seguinte não haverá mais nada a ser reconhecido; o amor indigente ocupa a cama e não nos poupa das cerimônias fúnebres dos próximos dias.



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