sábado, 13 de outubro de 2018

Suspenso o tempo em que o café esfria

  Apontou na porta da sala, enquanto eu tomava o meu café e me disse um bom-dia úmido, na manhã abafada. Suspeitei de alguma mudança no tom, no gesto, mas foram tão poucas as palavras. Talvez fosse gripe, talvez alegria, ou era mais choro ou, quem sabe, cura. O café na xícara esfriou, enquanto eu tentava ouvir para além da voz que já me abandonara,. E havia mesmo alguma mudança importante para que eu relatasse depois? Sou sua guia, sua tutora, sua guardiã e, às vezes, uma espécie de delatora. Anoto tudo para não perder algum indício que possa ser importante, observo cada curva na estrada dela para que nunca mais saia e consiga prosseguir a viagem.
   Foi ao banheiro e eu coloquei mais um pouco de café quente na xícara, enquanto escutava o barulho da água caindo na pia e as suas mãos abrindo o armário, destampando a pasta de dentes e, alguns segundos depois, bochechando. Cuspiu, fechou a torneira, abriu a porta, de novo, apontou o rosto na sala e eu parei a xícara no ar para ver o seu sorriso. 
  Cada barulho dela é uma canção nova para mim ou uma antiga, talvez, que custou muito, mas voltou a tocar no rádio de novo.

  Sentou-se à minha frente e  os seus olhos atravessaram a  xícara, aquecendo, de novo, o café e iluminando nossa manhã de feriado.
- Escutei os fogos, dia de Nossa Senhora, né?
  Eu balancei  a cabeça e sorri, porque não queria que a minha voz sobrepusesse a dela, que chegava demorada e preciosa até mim. Suspirou, enquanto cortava um pedaço de queijo e completou:
- Das crianças também, né?
  E sorriu, rara, genuína, inédita, depois de longos meses e em um retorno desejado, mas também inesperado. Foi ela falar em crianças e sorrir, para que a sala, de repente, se tornasse, de novo, um lugar familiar. Deixou mais verdes as suculentas na varanda, mais claras as cortinas, mais preto o café na minha xícara e mais castanhos os olhos dela, fez o gato passar entre os nossos pés e escolher permanecer nos dela, por alguns minutos. Fez o cão da casa da frente latir o quanto pode - muito velho, não tem podido muito, mas buscou com a potência, que essa manhã merecia, o seu latido ancestral. Fez o céu, as nossas mãos, o mamão na mesa, o pôster da Tarsila do Amaral, a xilografia da Santa Ceia, pendurada na parede, fez o gato e os pés macios dela parecerem grandes milagres no dia da padroeira.

  Foi ela deixar escorrer de si a palavra crianças e uma brisa com imagens, sons e cheiros entrou pela nossa sala. Eu a vi pequena, de vestido amarelo, em cima de uma bicicleta vermelha descascada, herdada de uns primos que a gente quase não via, porque moravam no Sul. Eu a vi de bochechas coradas, gritando com os meninos maiores para me deixarem em paz; eu a vi de franja torta e batom rosa, se arrumando para alguma festa que eu não podia ir ainda; eu a vi sorrindo enquanto servia um pedaço de bolo e chorando quando o prato com metade do pedaço de bolo caía no chão. Eu a vi chorando, chorando, chorando até eu não conseguir me lembrar mais como fazê-la sorrir.
  Foi ela falar sobre o dia das crianças e o cheiro de doce, de bolo, de granulado ser mais forte do que o do café. Mas, de repente, depois do último pedaço de queijo que ela colocou na boca, ainda se levantando, assertiva e de olhos para o alto, falou:
- Vou à feira.

  Há muito eu não ouvia desejo ou resolução vindas do outro lado da mesa. Há meses eu falo e ela concorda, lânguida, com um aceno de cabeça, bem suave, ou discorda não dizendo ou não se manifestando em coisa alguma. Mas, hoje, ela disse que ia em algum lugar e não me pediu, não teve dúvida, nem me chamou para ir junto, como teria feito nos dias de mais coragem.
  Hoje ela disse que ia à feira e se levantou, espantando o gato dos seus pés e me deixando com a xícara no ar e o café frio, mais uma vez.
  Eu não esperava pela sala iluminada, pelos objetos de sempre, ganhando cor, pelo gato amoroso ou pela fatia de queijo grossa que ela cortou e comeu, não esperava, sobretudo, por  anúncio algum de saída. Eu continuei sentada e ela voltou do quarto com uma bolsa e par de sandálias nas mãos. Se sentou numa das cadeiras, calçou as sandálias, sorriu e me perguntou se eu desejava alguma coisa?
- Para fazermos para o almoço.
  Saiu e eu não pedi o que, agora, desejava sem nem saber dizer ou, ao menos, saber sentir.
Eu só sabia querer que ela voltasse; eu só não sabia dizer que queria.

  Ela abriu a porta, passou pelo batente, fechou-a novamente e deu duas voltas com a chave. Ainda a ouvi  guardar o molho de chaves na bolsa, esbarrar num vaso de plantas recém colocado no hall de entrada e escutei os seus passos por todo o corredor, mas resisti ir até a janela e espiar suas costas sumindo no declive da rua. Ela saiu e eu continuava sentada com um resto de café frio no fundo de uma xícara, que eu segurava como único objeto a me manter no mundo, embora assombrada, resistente. O fundo da xícara era o meu mergulho improvável na manhã do feriado. Ela trancou a porta e me deixou sozinha, atada a uma centena de fios de memória embolados.
 Ela saiu eu me lembrei do rosto, do sorriso, da cólera, da nota de um dólar que ela me deu quando eu era adolescente, eu me lembrei de que nunca, nunca, nunca tinha visto olhos mais bonitos e sentido tanto que um amor  era meu e eu não podia segurá-lo. Tive taquicardia com a sua ausência inesperada, suores frios e mãos trêmulas, tive sede e arrependimento, ambos me deixavam esmagada e vazia; tive voltas no estômago, dor de cabeça, angústia e senti a ambiguidade de querer vê-la ir sozinha, mas também não querer, por não saber se ela ia bem.

  Eu olhei desesperada para as minhas mãos soltas das dela e depois, para a porta; eu olhei, suplicante, para uma imagem de São Francisco em cima do aparador da sala, para o Buda e Shiva na estante. Como eu serei sem ela, como eu poderia falhar em não salvá-la ilesa ou quase? Eu rezava sem saber para quem, só queria que ela voltasse, que a feira, de fato, não fosse um rio, um carro, uma ponte, um qualquer outro lugar que me afastasse definitivamente do seu bom-dia escorregadio.            
  Andava de um lado para outro, regava plantas, tirava a poeira dos móveis, lavava a louça, os panos de chão, os azulejos, o fogão, enchia as garrafas d'água da geladeira e evitava o telefone; quem eu chamaria se ela não voltasse?
  Olhava as minhas unhas, pensava que poderia ter pedido que ela comprasse para mim um removedor de esmaltes na farmácia 24 horas e, assim, ela regressaria para me entregar o pedido. Mas eu não disse nada.
Cansada, muda e desamparada de qualquer certeza, sentei em frente a porta e pedi muito que ela não partisse. Não em um feriado tão cheio de memórias nossas.

  Eu nem precisava fechar os olhos para ver suas costas numa camiseta turquesa, o cabelo preso em um rabo de cavalo apertado e as suas pernas finas, pedalando uma bicicleta vermelha descascada. Se ela nunca mais voltar, o meu café jamais se aquecerá de novo.
- Não tenho para quem ligar.
  Acho que essa frase saiu mais alta, no meio de uma dezena de outras, na sala. Algumas vidas depois e o barulho no vaso de planta do hall se repetiu,  o molho de chaves sendo capturado por uma mão e duas voltas de chave na porta depois:
- Trouxe carambolas.
  Como foram doces as carambolas que eu comi esta tarde. A cada pedaço que eu cortava, chorava mais um pouco; de alívio, de gratidão, de amor pela fruta ofertada, pelo feriado e porque ela começou a adoçar de novo.



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