sábado, 24 de novembro de 2018

Convite para não ser só

  Quando fecharem os comércios, pararem de servir o seu copo, começarem a colocar as cadeiras em cima das mesas nos bares, se antes de pagar a conta você for ao banheiro e tiver dúvidas sobre a pessoa no espelho; se perceber-se pouco alcoolizada para esquecer a grande pergunta e desconfiar que não poderá dormir neste dia,  pode vir me ver. Venha pela manhã, que eu não me importo em acordar com você no interfone ou se quiser, me diz na noite anterior, que eu aviso ao porteiro para que te deixe subir, destranco porta  e você me acorda.
  Mas se pela manhã não tiver disposição, pela ressaca, pelos peixes a serem alimentados, pelo lixo que ainda não colocou para fora, venha à tarde e eu coloco as cartas para você. Faço um bolo de cenoura, adivinhamos o seu destino, enquanto comemos, ou ficamos sem nos mover com as cartas nas mãos e não tiramos nenhuma; com o consolo da espera e cansaço.
  Se, também, durante a tarde preferir a solidão de um banho morno e a cama desarrumada desde ontem, coloque um sapato ao se levantar depois do sono e venha à noite, assistir à novela, fumar na minha sacada, enquanto suspiramos para o céu, pedimos um sanduíche e relembramos um hino religioso que nos inspire paz.

  Se ao final de um dia de trabalho sentir a desolação tão pesada quanto o grampeador nas mãos, os pés inchados no sapato, que poderia ser um número maior, e muito distante do seu sonho, venha sem avisar, venha com a roupa do corpo, venha sem dinheiro, sem explicação, sem cerimônias, sem lógicas, sem sorrisos amarelos; venha sem prazos para ir embora.
  Vamos sentar sobre as nossas pernas no tapete da sala, mudamos de posição quando começarem a adormecer, buscamos mais café quando as nossas xícaras se esvaziarem, mudamos de assunto quando nossas respostas  falirem. Olhamos fixamente para o gato, aprendemos a não nos preocuparmos como ele, a andarmos sobre os muros estreitos, a pularmos na hora certa, a lambermos as nossas patas com delicadeza. Procuramos fotografias antigas, os cartões que eu não enviei no tempo certo e que guardei para ler depois, rimos das minhas ânsias de paixão, das ironias muito pueris e da minha disposição para explicar tudo dentro de parênteses.

  Se depois de assinar um papel, cujo destino seja  um lugar que não permita desistência sem perdas e isso parecer assustador demais, infinito e pesado. Venha e recolhemos as roupas do varal, dobramos em quatros partes e fazemos uma pilha com cheiro de recomeço. Trocamos as lâmpadas queimadas, acendemos velas e nos iluminaremos sem pressa, com as pequenas luzes que não nos esclarecem, mas não nos abandonam no breu.
  Venha para passar manteiga sobre o pão com a mesma lentidão de um filme iraniano, fazemos  torradas e patês, enfeitamos a mesa e fazemos um jantar. Enquanto descascamos, cortamos e cozinhamos os legumes, falemos dos temperos, do tempo de cozimento, tomamos um vinho e comemos em silêncio; a louça, pode deixar na pia, eu lavo no dia seguinte. Não falaremos do papel, da caneta nem sobre a sua mão, se não quiser.

  Se não receber uma ordem de despejo, mas mesmo assim sentir-se absolutamente sem lugar, venha passar o resto do dia, a semana, o mês ou se se mude para cá.
  Venha dividir um bule de chá, comer uns biscoitos, deitar no sofá, enquanto eu desembalo os enfeites do último natal, que eu tentarei repetir esse ano; nunca conseguindo. Encolha os pés e eu coloco a ponteira de estrela sobre o sofá - artigo mais importante - passo por cima de você as luzes que preciso testar e você verá sua barriga, sua cabeça, seus pés, acenderem e apagarem.
  Se a sua geografia parecer completamente perdida, podemos montar a árvore ou só abrir as caixas, olhar nossos reflexos nas bolas espelhadas, interrogar anjos, organizar cordões de estrelas e, no fim,  adiarmos a abertura das festas.
  Podemos pensar noutras tradições, romper com essa que eu inventei em casa e criamos outras, que não pareçam tão tristes, quando ficam vazias.

  Se ouvir ao telefone uma declaração apaixonada e não souber o que fazer com tanto sentimento. Sentir dúvida, medo, culpa ou um incômodo de qualquer tipo, venha ouvir músicas novas, antigas, no aleatório, álbuns completos. Dançamos ou não, cantamos ou não, apreciamos ou adiantamos a faixa, discutimos os arranjos, as letras ou só nos permitimos sucumbir aos tons, sons, potência passional dos tímpanos à alma.
 Enquanto a música nos toca, podemos pintar as unhas ou usá-las para descascar mexericas, comemos meia dúzia e a sala terá o cheiro da casa onde sempre moramos, mesmo que há muito já tenhamos nos mudado de lá. Vamos ouvir amor de verdade, sem idealizações nocivas, sem a precariedade da romantização, sem o desespero pelo eterno. Ouça, cada nota é um amor que se agrega a suas células sem nunca pesar; ao contrário, nos faz mais leves.

  Se depois de uma consulta médica ou ao receber o resultado de exame, tiver medo da morte ou da dor. Venha sem agendar, sem indicações; venha me contar, me pedir para dormir com você esta noite, com a luz do corredor acesa.
  Venha não ouvir conselhos, venha não planejar, não se desesperar nem se curar, venha partilhar sua doença, que eu ajudo a carregar. Venha me mostrar seus punhos na parede, suas receitas na bolsa, seu choro adiado, sua coragem nascendo, seu pulmão sufocando e depois se abrindo, junto com a garganta.Traga suas prescrições, suas listas, suas fugas, seu enfrentamento; não se esqueça do pijama e de uma muda de roupa a mais.
  Venha e eu faço arroz doce se quiser, coloco canela como você gosta. Venha e eu leio uma história para sonhar, coloco uma música que me faz lembrar você e digo:
- Essa música se parece com você.
  E você sempre que ouvi-la, vai se saber de mim também.

  Se nada acontecer e você acordar com uma angústia inexplicável, não se isole, não se apavore, não pense que pode passar só. Venha passar de mãos dadas comigo, venha ser triste sem ser só e eu não tento pregar alegria. Venha lavar a calçada, limpar os frisos, tirar as pequenas vegetações  entre os paralelepípedos.
  Venha se despir do cinza das ruas, dos rostos isentos, dos mapas, dos mitos, das contas-salário que abre a cada novo emprego. Venha me ver arrumar o guarda-roupas, venha experimentar os chapéus esquisitos que eu comprei e nunca usei, coloque sobre a sua cabeça o inusitado e não tente ser feliz a todo custo. Venha para eu fazer uma trança no seu cabelo, uma franja, para passar a máquina, fazer a barba ou a sobrancelha e você se estranhar mais no espelho. Venha para não encontrar completude, certeza, geladeira cheia e uma casa organizada. Venha para não fazer nada, não comprar nada, não ser melhor em nada.
  Venha para coar o café, abrir as cortinas e levantar o tapete, enquanto eu varro; venha porque no banheiro do bar, ontem à noite, eu não me reconheci no espelho e eu só queria lavar as mãos.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais nestes 33 dias para ir ao desconhecido,

Querida Amanda,

Li a crônica súplica com mais calma nesta manhã. A moça conclui num lamento solitário - "ontem à noite, eu não me reconheci no espelho".

ontem à noite, eu não me reconheci no espelho
ontem à noite, eu não me reconheci no espelho
ontem à noite, eu não me reconheci no espelho

Há um sofrimento que não cessa. E enquanto sofre dissimula com propostas ao outro em si, o outro que a habita, que a faz sofrer. Não diz, mas me parece que chora. Chegue aqui por que lembrei da autobiografia da Iyanla Vanzant, que é um livro muito interessante, muito bom:"Ontem, eu Chorei".

Abaixo, um trecho do livro, que eu vejo pertencer à protagonista da sua história:

Ontem, eu chorei.
Voltei para casa, fui para o meu quarto, sentei na beira da cama.
Chutei os sapatos, desabotoei o sutiã
E caí no choro.
Quero que vocês saibam que
Eu chorei até meu nariz escorrer molhando a blusa de seda que
Comprei na liquidação.
Chorei até minha cabeça doer tanto, que eu mal via a pilha de lenços de papel
No chão aos meus pés.
Quero que vocês saibam
Que ontem eu chorei pra valer.
Ontem eu chorei

Por todos os dias que estive ocupada demais, ou cansada demais, ou com raiva demais para chorar.
Chorei por todos os dias, por todas as formas e por todas as vezes em que desonrei, desrespeitei e desliguei meu Eu de mim mesma.
Mas meu Eu se refletiu de volta para mim quando os outros fizeram comigo as mesmas coisas que eu já fizera comigo mesma.
Chorei por todas as coisas que me foram roubadas;
Por todas as coisas que eu pedi e não consegui receber;
Por todas as coisas que, depois de conquistar, eu dei a outras pessoas em circunstâncias que me deixaram vazia, gasta e exaurida.
Chorei porque realmente chega um momento em que a única coisa que nos resta é chorar.
Ontem eu chorei.
Chorei porque meninos são abandonados pelos pais; e as meninas são esquecidas pelas mães;
Os pais não sabem o que fazem e por isso vão embora;

As mães são abandonadas e ficam com raiva.
Chorei porque eu tive um menininho, e porque eu ainda era uma menina pequena, e
Porque eu era uma mãe que não sabia o que fazer, e
Porque eu queria que meu pai estivesse comigo, que chegava a doer.
Ontem eu chorei.
Chorei porque feri alguém. Chorei porque fui ferida.
Chorei porque a ferida não tem para onde ir senão até o mais fundo da dor que a causou, e quando chega lá a dor acorda você.
Chorei porque era tarde demais. Chorei porque tinha chegado a hora.
Chorei porque minha alma sabia que eu não sabia
Que minha alma sabia tudo que eu precisava saber.
Chorei um choro espiritual ontem, e esse choro me fez muito bem.
E me fez muito, muito mal.
Em meio ao choro, senti minha liberdade vindo,
Porque
Ontem eu chorei
Sobre cada momento da minha vida.

Iyanla Vanzant

Um abraço

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, vinte e oito de novembro deste 2018 (sempre fomos ao desconhecido...o que me apavora são os velhos conhecidos, que renascem ou nunca morrem de fato.)

Querido Paulo,
compartilho da sua apreensão...também acho que a moça chora, que chora e não quer chorar, que chora e sabe que não tem remédio para este choro.

Mas choro eu, quando leio o presente belíssimo que me trouxe... que beleza de prosa poética!

"Em meio ao choro, senti minha liberdade vindo,
Porque
Ontem eu chorei
Sobre cada momento da minha vida".

É isto, o choro sobre cada coisa também liberta!

Muito, muito, muito grata. Eu gostei demais do texto, Paulo.
Abraços