terça-feira, 20 de novembro de 2018

Um cotonete no telhado e o coração no beiral

   Mais do que o azul, tenho no agora o alaranjado molhado das telhas coloniais, sob a minha janela, nesses dias de chuva.  Mais do que as ondas esparsas vindas de um quase infinito, eu vejo os cordões de água da chuva escorregarem nos vãos do telhado vizinho.  Mais do que o mar para sonhar, ondas de barro, empilhadas numa estrutura de madeira, apaziguam as urgências que eu não posso conter.
  Mais do que uma paisagem idílica, me comove a casa ao lado e tudo o que nela ainda está incompleto. A cozinha onde quebraram uma parede, mas  não fizeram nenhum acabamento nos tijolos sem reboco; a metade de uma varanda sem piso, a escada entre a cobertura e a lavanderia, sem as barras da lateral - e por isso a avó sempre reclama quando vai estender as roupas; um terço do muro do quintal pintado de cinza e os outros dois terços, ainda, com o branco de outros anos; as marcas de pneus de um carro na garagem que ficou vazia, um homem cuja voz eu não escuto mais, enquanto tomo banho.

  O menino fala com uma voz, a cada dia, mais grave, a mãe tem variado mais os assuntos, que antes se restringiam ao doméstico universo,  a avó fala da feira e do governo, das flores que plantou e dos rumos da política externa, de uma doença de pele e do sistema público de educação, o cão ainda late a qualquer barulho na rua, só a voz do homem não mora mais ao lado. A incompletude agora está somada a esta ausência.
  Eu soube que ele iria embora meses antes de o carro arrancar em frente a casa; fui sabendo pela minha própria memória, acostumada com um avô que partiu, um pai que não ficou, tios que deixaram suas casas enquanto os filhos choravam nas janelas das salas. Fui entendendo a sua possível partida, pelas confidências da mulher ao telefone ou com a mãe, enquanto picavam legumes, pela frequência das pescarias dele nos finais de semana, pelos quilômetros rodados no carro velho sozinho, pelo vínculo amoroso e impenetrável entre a mãe e o menino. Soube e lamentei antes mesmo de vê-lo de costas, saindo pelo portão cinza.

  Dedico um tempo indeterminado a essa contemplação do telhado, porque me acalma, alimenta minhas divagações e me ensina a gostar ainda mais do que é próximo. No meu apartamento, tenho coisas bonitas que não uso, tenho outras nem tão belas que me deixam confortável e eu uso sempre. Olhar o telhado é conforto de saber onde estou, quando acordo e a certeza do lugar para voltar, quando vou dormir.
  Saber que ele é incompleto e guarda ausências é reconhecer o imponderável da vida. A casa é bonita porque nunca está pronta; a partida do homem é dolorida, porque sempre penso na personagem sobre quem contam, mas cuja voz não aparece nas páginas.

  Ainda chove, o telhado está quase todo limpo, só um cotonete não é arrastado pelas águas. Passo  muitos minutos, tentando entender o que o prende, esperando que ele  não resista aos pingos que aumentam ou calculando a distância entre ele e a minha janela, o comprimento do meu braço mais uma vassoura e, talvez, meio corpo meu debruçado na janela. Era o homem quem limpava o telhado, todo final de setembro.
  Enquanto sou vigilante do cotonete, o homem abre o portão cinza, depois de estacionar e eu nem notar o carro, o cão vai ao seu encontro, os dois ficam na chuva e eu acho que choram. O cão passa a face na perna dele muitas vezes, ele se abaixa e dá batidinhas amorosas na cabeça marrom, muito molhada, e, por isso, ele demora mais a entrar. Tomam chuva, matam as saudades um do outro e a casa, da minha janela, parece um pouco menos vazia agora.

  Eles entram num corredor coberto, externo à casa, o homem bate a campainha, alguém abre a porta e, minutos depois,  fecha. Não escuto mais nada de lá, nem o cão late.
  Volto para o cotonete preso e espero que ele caia; eu não gosto de telhados sujos. Eu não gosto porque me lembram da irresponsabilidade humana com o lugar que só enxergam espaço.
  Eu não gosto dos planos porque eles roubam os instantes do agora e nunca os devolvem. Eu não gosto dos planos porque eles falham, mesmo que sejam traçados com muitas certezas.
  O que eu não gosto na ideia do para sempre e, por isso eu não falo para sempre, é que ele não pode durar, se já começar para sempre. Eu uso um dia de cada vez, mas não resisto a viver muitos em uma só hora
  Eu não gosto das promessas porque elas são verdadeiras no começo, mas precisam mentir para sobreviverem.
  O que eu não gosto nos torturadores não é a potência dos seus socos, tampouco o que podem fazer com as suas mãos, eu não gosto é do vazio das suas almas, do que nunca suas cabeças poderão alcançar.
  O que eu não gosto do amor é quando ele só olha para uma pessoa e ignora as nuvens brancas em um céu azul claro, não vê as ondulações da paisagem e que isto também pode ser um amor profundo e o mais leal.
  O que eu não gosto nos finais de novela são os clichês muito inverossímeis, porque depois dos casamentos não é felicidade contínua e não é só o vilão que enlouquece.

  O cotonete escorrega de uma só vez, é rápido demais para eu entender como ele se desprendeu; é  como o leite que ferve e se espalho no fogão, no segundo que distraímos, com a senha e o atendente impaciente gritando o nosso número, com a mensagem que não vem, se estamos com o telefone na mão.
  Mas o cotonete não chegou ao chão,  está pendurado em um beiral do telhado da casa, em formato de coração. O telhado da casa vizinha agora é limpíssimo, não precisamos do homem para limpá-lo nesses dias. Basta uma vassoura longa e qualquer um pode tirar o cotonete do beiral. O homem ainda não saiu da casa, não sei se sairá e se sair, se voltará. Só sei do cotonete preso no ângulo debaixo de um coração.

  As incompletudes da casa me lembram das minhas, das paredes que ainda não consegui pintar, dos pisos que eu deixei de assentar, das barras que eu disse que colocaria, mas me acostumei às vertigens de todos os dias. 
  Estamos condenados a termos o coração dependurado, assim como o da ponta do beiral do telhado, sem segurança alguma, sem proteção e nenhuma garantia de  longevidade. Um cotonete resistente, um coração vazado e vulnerável, um telhado apaziguador, o homem e o cão, sob a chuva, com um amor que espera sem ressentimentos e outro que volta sem pudores. 
  Esta noite, possivelmente, vou sonhar com a volta do pai; eu sou como o cão, não suporto despedidas, minha cabeça sempre está a espera de um retorno macio.




4 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais nestes rios voadores de 26 de novembro de 2018

Querida Amanda,

Rios voadores são das coisas mais poéticas que conheço da natureza. São formados pela umidade amazônica, que formam rios de nuvens carregadas que fluem de outubro a março na região sudeste (https://mundoeducacao.bol.uol.com.br/geografia/rios-voadores.htm)

Fiquei pensando na água que veio dos Andes, da floresta, dos povos e das coisas da floresta e tocaram o cotonete azul no telhado ocre, molharam o cão o homem, lavaram a sua alma? Na parábola do filho pródigo que regressa ao lar, a primeira providencia é o banho. Verdade, pensei nisto tudo.

Lendo seu texto lembrei também de um casal destes amigos para sempre, desde sempre, ela professora doutora pedagoga da Federal e ele empresário. estiveram aqui em casa falando de uma viagem que fizeram ao México, e claro, visitaram a casa da Frida Kahlo. Ela, pedagoga, falou dos livros das artes, da textura e da cor das paredes, ele, engenheiro, falou das órteses, da mobilidade, do espaço, e sobretudo do livro do Portinari,lido e relido na prateleira do tempo da Frida. Um livro do Portinari ... impressiona a gente.

Mas não foi aí que lembrei do seu texto, a visita foi longa e demorada, e eles são destes que parecem loucos para contar estes detalhes para quem também parece louco.

Dali seguiram a pé para a casa do Trotski, pois a esposa recusou-se a visitar a casa de Diego Rivera (não tive explicação e também não perguntei).
Ele falou que a casa do Trotski era triste, inacabada, aí citou um testo da Cynara Menezes, que não se recordava de quando, mas como sabia que eu tenho certa resistência política à moça, não insistiu muito. Quando foram embora, fui lá buscar no Google e - caramba - Amanda machado entra em Flow para escrever - http://www.socialistamorena.com.br/o-chao-da-casa-de-trotski-era-vermelho/

Um grande abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, vinte e sete de novembro de 2018...("e o mundo não se acabou!")


Querido Paulo,
suas cartas são preciosidades a serem lidas, esmiuçadas e contempladas por semanas. Há sempre tanto nelas, desde informações seguríssimas e confirmáveis (em tempos de Fake News é uma raridade!), boas histórias para serem ouvidas, poemas, músicas e a há, ainda, a sua voz fartamente reconhecível, acho. Depois de algumas dezenas delas (felizmente), já sou capas de ouvi-las, acredite.

Que conexões você me trouxe! Os rios (rios voadores é coisa mais bonita e emblemática!) , as chuvas e as casas de Frida e Trotski...a da Frida é um sonho remoto...acho que desde os meus quinze anos, quando soube de Frida. E, agora, a de Trotski, depois do texto da Socialista (?) Morena então...que vontade de pisar naquele chão vermelho! A de Rivera eu também, possivelmente, não visitarei.

Bom, é isto, sua carta ainda leio ou ouço...

Abraços,
Amanda

Paulo Abreu disse...

'A de Rivera eu também, possivelmente, não visitarei." - A incrível e fantástica sororidade não tem fronteiras ...

Amanda Machado disse...

Sim, Paulo! Não tem...ou não terá! A revolução será feminista ou não será.
(Rindo aqui...ainda bem que é um leitor/interlocutor astuto)

Abraços