sábado, 8 de dezembro de 2018

Um poema que continue depois da última estrofe

  Uma música que nos lembre o amor e que, assim, ele ainda dure, mesmo quando já for o seu fim. Que relembre as pessoas que não são mais as mesmas, nem nós nem elas. Que até nos faça chorar, mas não seja arrependimento, angústia ou desespero só saudade macia entre os suspiros e  que nos lembre que a invenção do amor é uma obra de arte; se soubermos partir ou deixarmos ir.
  Uma música cujos os acordes pareçam acompanhar as batidas do coração e que mesmo que toque muitos anos depois do final da última página, reconheçamos cada frase como se fosse um diálogo nosso.
  Uma canção que alimente o amor, que ele não morra enquanto houver música no mundo. Que ele mude de lugar, que as personagens sejam outras, que o seu nome seja desconhecido ou que não seja de tão  fácil identificação, que ele se converta em outro estado, mas que continue vivo. Infinito; somente apartado de onde durou. Uma música que conte a história dos amantes ao mundo e que, ainda assim, o amor continue muito discreto, sem revelar os nomes. Que atravesse fronteiras e que mesmo que não fale o seu idioma, alguém se emocione com a música que um dia chamamos de nossa.

  Um gesto que não acabe nele mesmo. A mão no ombro que chama ao regresso, a mão no queixo que  indique como levantar a cabeça, o abraço que ajude a remendar o coração partido. Um gesto que se repita, mesmo que a mão só tenha nos tocado uma vez, mas o bastante para nos trazer de volta, erguer nossa cabeça e a apaziguar o coração intranquilo, muitas vezes mais.
  Um gesto-guia, que nos estimule a também oferecermos o pouco, que é tudo. Um gesto que nos faça conduzir alguém à luz , porque é assim que nos iluminamos. Um gesto que abra o sol e nos poupe de escuridões acostumadas.  Um gesto que nos aponte as estrelas, os sorrisos, as sombras dos desenhos apagados nas paredes ou carteiras de escolas. Um gesto que não nos separe, mas una os diferentes em uma rede de ensinamentos e respeito.

  Uma palavra que ecoe, como um hino, uma oração, que nos inspire coragem e paixão. Que nos lembre que amamos e somos amados, que desejamos e somos desejados, que lutamos por alguém e que alguém luta por nós, que enquanto esperamos a ligação alguém aguarda a nossa voz.
  Uma palavra que nos silencie somente para que ela dure em nós, que  seja anotada ou impressa em um livro para o leitor do futuro se comover com ela tanto quanto nós.
  A palavra que nos atravesse, nos seduza, nos questione sobre o que chamamos de verdade; uma palavra que nos incomode, desassossegue e nos desafie.
Uma palavra que caiba em muitos espaços, mas não seja limitada a um só lugar. Uma palavra dona dela mesma.

  Um cão que nos olhe sem medo, com o amor que é tão próprio do cão. Que não nos julgue como humanos perdidos; um cão esperançoso da humanidade. Um cão que nos convoque a querê-lo salvo, livre e amado.
  Um cão que não avance, não lata, não nos ameace, um cão que não sinta-se indefeso, quando levantamos a mão e oferecemos carinho. Um cão sem coleira, sem dono, sem sapatos; com integridade.
  Um cão que nos salve da nossa violência, que nos ensine a amar alguém que nos abandonou por horas no apartamento, que é capaz de amor-perdão e rabo abanando na chegada. Porque não é verdade que o cão se esquece da nossa maldade, ele só não se importa, porque nos enxerga além.

  Um dezembro doce, mesmo com chuva, mesmo com desilusões batendo a porta da casa da esperança. Um dezembro que permita vivê-lo sem retrospectivas anuais, um dezembro que não seja fim, pressa, busca por  presentes quaisquer pelas galerias do centro.
  Um dezembro que não nos distancie de maio, não tenha riscos de caneta sobre o calendário. Um dezembro que nos ouça e não seja só músicas de natal.
  Um dezembro que dialogue com as despedidas e que se comova sobre elas, com choro e soluço sinceros.

  Um destino que nos proporcione vários outros dentro dele, que seja um guarda-chuva, que abarque tudo o que não coube antes, mas agora cabe. Um destino que nunca pense, principalmente, em futuros.
  Um destino que nunca seja completamente lido nas cartas, previsto pela astrologia, preparado pelas teorias. Um destino livre de idealizações e carregado de expectativas.
  Um destino que cruze com vários outros pelas esquinas e modifique-os profundamente; um destino, também, plenamente modificável.

  Um poema que continue depois da última estrofe. Um texto como uma revolução, com infinitas lutas, com perdas de batalhas, atrás de perdas e alguns sucessos comemorados.
  Um poema que conduza o amor de uma pessoa até outra ou várias outras, que nos faça respirar entre os seus versos e suspirar profundamente depois da última estrofe. Um poema cuja autoria seja desconhecida e, ainda assim, seja muito repetido.
  Um poema que pode ser um chamado, um convite, uma ideia, uma história, um passo de dança na coreografia, um instrumento de salvação. Um poema que pode ser um pedido: um pedido que é um texto, que é um desejo, que não é só meu. Um poema que não deixe a poesia acabar.



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