sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

As finitudes de todos os dias

  Só batemos a porta porque as palavras certas não chegam a tempo; o punho é mais ágil na partida.  Choramos antecipadamente, machucamos o outro porque já suspeitamos do final, antes de virar a esquina. Desmarcamos compromissos, cancelamos comemorações; nos ausentamos de todos lugares, mas antes, nos permitimos a fuga de nós mesmos. Mudamos o tom da voz, falamos somente o necessário, calamos tudo o que mais queríamos e falamos o que nunca imaginávamos. Deixamos de fazer o café, a geladeira é vazia e começamos a andar pela cidade como se não pertencêssemos a ela. O país é o mesmo, mas o idioma é indecifrável, colocar a chave na fechadura é suspensão e despedida a cada volta.
   Planejamos o que  vender, o que abandonar e pelo que ainda lutaremos. Brigamos na cozinha por um ovo, um pano de prato queimado, um vidro de azeite que espatifou no chão, enquanto os vizinhos preparam o jantar. Defendemos um território imaginário e ignoramos os outros todos; perdemos a amplidão dos nossos olhares. Rancores plantados no vaso da margarida que morreu de sede.

  Tentamos nos desfazer dos cascos de vidro guardados por anos, depredamos um sonho em conjunto porque não podemos mais tê-lo para dois. Separamos os livros e descobrimos que aqueles que mais nos modificaram têm o outro nome nas páginas iniciais, com dedicatórias bonitas. 
  Quase matamos os peixes entupidos de comida, mas nos recusamos a partilhar novas refeições; desviamos dos antigos amigos, dos lugares favoritos, da reunião da escola do filho - um não vai porque acha que o outro iria - o filho tem o seu momento de orfandade. Os pais assassinam um amor, enquanto deixam o filho esperando no carro. Daqui a pouco voltam, cada um a seu tempo.
  O casal da casa ao lado delapida o único patrimônio possível, porque é doloroso admitir que o amor também é finito.

Ele negociou o sofá e ofereceu uma janela, que não chegaram a colocar na casa.
- A minha janela não! Você não tem o direito de oferecer a minha janela. Cada um com as suas coisas.
Ela grita, enquanto ele tenta se defender:
- Achei que gostaria de vender também.
  O filho fala com ela, ela continua repetindo os limites de cada um na casa:
-  Cada um no seu território. Nada de ultrapassar. Respeite.
 O sofá sai pela porta da frente, é a primeira vez que eu assisto um final materializado. A saída  do sofá cinza não suspende o movimento da rua, não causa nenhuma comoção aos outros vizinhos, mas o filho observa, melancólico, a entrada do sofá da casa num caminhão desconhecido. E eu observo o filho e o sofá.
 Vão vender o tapetes e as cortinas, vão dividir os livros, os amigos, os dias de cada um com o filho. Mas nunca chegarão a colocar a janela nova. A janela é o futuro sonhado que não chegou a acontecer. Entendo o estado de sítio que eles vivem nesse fim.
  
  Do outro lado da rua, num apartamento pequeno, um rosto redondo e sorridente chega até a janela várias vezes ao dia. Olhos apertados e bochechas rosadas, aparecem entre cortinas de renda. E da janelinha de um apartamento da esquina, só uma frase ecoa:
- Tá atrasada.
  A mulher diz isso a cada pessoa  que passa, eu já me acostumei, mas quem não a conhece se assusta, acha inusitado ou finge não ouvir.
  Ela mora com a filha e se esquece da sua própria  história um pouco por dia. Só a frase permanece. Dizem que ela era zeladora de uma escola do centro da cidade. Os olhos fixos no punho esquerdo, sem relógio, e a frase repetida diariamente, possivelmente, são as marcas que o seu cérebro se recusa a apagar.
- Tá atrasada.
  E eu acho mesmo que sempre estamos.

  Nos últimos anos, todas as noites ela se deita com a sua própria finitude, sem saber. O fim de quem é, de quem foi e tudo aquilo que aprendeu, viu, ouviu, pelo que chorou ou sorriu. Há um diagnóstico, há um apagamento crescente de gestos, palavras e respostas. São as perguntas que parecem se alastrar a cada dia: Quem é essa? Quem é esse? O que é isso? Quem é você? De quem é essa casa? Cadê meu pai?
  Mas surpreendentemente ela mantém o compromisso de alertar sobre os atrasos. O relógio que ela nunca tirou do punho, a frase que ela repete todos os dias, muitas vezes.
- Tá atrasada.

  O casal constrói seu fim a cada espaço, mobília e afeto disputados. Sabem que o amor se mudou, antes do sofá ser vendido e se ressentem pelo que não puderam controlar. Estão condenados a um luto diário, por um corpo há meses enterrado. Ela não vende a janela que não chegaram a colocar na casa. Ele não tem mais parte alguma da janela encostada numa parede.
  A mulher da janela pequena, do outro lado da rua, também acaba, mas não sabe. Está condenada a perder todos os seus dias passados, lentamente, e salva de saber que perde.
  Em que janela cabe mais alma? Em uma sem futuro ou na outra que apaga o passado? Em ambas só o agora passa.

   Me despeço do sofá e dos olhos tristes do filho que assume, por enquanto, as suas próprias maternidade e paternidade. Ele cresce muito a cada móvel vendido, ele avança em centímetros e anos a cada dia a mais, numa casa em guerra.
  Me despeço do olhar da mulher na janela, não que ela não estará lá amanhã, mas uma parte da sua memória, que brilha ainda hoje, não acordará pela manhã.
 Alguns negociam janelas, outros atravessam outras existências através delas. Nunca estamos preparados para o fim, às vezes o antecipamos e com muitas mágoas batemos portas e desfazemos do sofá; outras, perdemos a noção dos dias que não teremos mais, depois de dormirmos. A finitude é o lugar mais desconfortável para sentar, depois que o sofá é vendido. A janela sim é, ainda, promessa.







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