domingo, 13 de janeiro de 2019

A vida. O que é?

   É a metade do varal com roupas  penduradas, exalando lavanda e outra metade ainda no balde torcida. O olhar descansando no horizonte, o meio sorriso e o suspiro, antes de abaixar e pegar a próxima peça. É o quintal perfumado com roupas limpas e a criança passando entre os varais, de olhos fechados, varrendo os cabelos com as bainhas molhadas das roupas, para refrescar-se do calor, depois de tanto brincar. A mulher assiste a cena da janela, mas não destrói o pequeno prazer da menina.
- Depois é só passar uma água de novo, se precisar. Hoje tá quente mesmo.
  E volta para os próximos afazeres, contente por quase nada.
  É  recolher a roupa no final da tarde e enquanto dobra, pensa que o suor que mais ama está no tecido. Não há manchas, não precisa lavar de novo, mas que bom que ela sabe que está lá. Vai estender a toalha na mesa, trocar os lençóis, passar a calça masculina, recolocar a cortina na sala e a cabecinha da menina vai ser sabida por ela na casa inteira. Um segredo que é só dela: a filha espalhada.

  É o açúcar no fundo da xícara, o bolo de fubá no pequeno prato de louça e a mão idosa, cortando mais um pedaço de queijo e oferecendo uma lembrança indissolúvel, que só reconhecerá a sua força muitos anos depois.
- Só mais um pedaço.
  É, antes de comer  o queijo, perceber as digitais da mão que o cortou e foi a mesma que o fabricou, no pedaço farto.
- Aperta a massa assim, bem firme, mas com cuidado. Depois tira o soro todo assim e coloca na forma para maturar.
  É querer chorar porque nunca mais os queijos serão das mesmas mãos. E sentir a alegria de ter experimentado esse gosto um dia. A cada pedaço de queijo, a memória reacende uma tarde de sábado amorosa.

  É uma mulher de sessenta anos, de tênis dourado, macacão estampado, cabelos compridos tingidos de preto, sentada solitária na mesa do bar da esquina tomando sua cerveja, fumando um cigarro,  recostada na parede de azulejos, olhando para o trânsito e enxugando uma lágrima. É ter interrompida a sua tristeza por um desconhecido mais jovem do que ela, que chega de muletas, se senta na mesa ao lado e oferece uma conversa.
  É dissipar a lágrima, ao menos por enquanto, sorrir um pouco, dividir seu maço de cigarros com o desconhecido, comer um pastel de queijo, pagar com moedas uma cerveja e um pastel e ir embora sob os pés dourados firmes e quase alegres de novo.

  É a barriga da mulher crescendo em sonho, amor e medo. É a maternidade assumida desde antes de um bebê crescer dentro dela, desde antes dela estar crescida. É ter sido mãe de muitos filhos não gerados. Mais velhos, mais livres, mais difíceis de amar, mais carentes. Pai, irmãos, amigas, colegas de trabalho, avós até e não sentir-se preparada para ser a mãe do seu filho.
  É amparar-se nos livros, nos médicos, nas outras mães, mas quando ouvir o choro de chegada, desvencilhar-se de todo o aprendido e viver no risco, nos equilíbrios diários em uma corda estreita. É ser a mãe diferente da sua, mas às vezes tão igual que assusta. É amar o sujeito e se cansar do verbo, às vezes. É se entregar ao verbo e querer o sujeito livre, um dia. É não saber nunca, mas responder com a segurança de quem sustenta.
  É a materialidade do amor idealizado, nem um pouco igual ao sonho, mas fabuloso na mesma medida.

  É cão que foge do quintal pequeno por um portão que o vendedor de gás deixou entreaberto e que explora as ruas ao redor, com a felicidade da descoberta. Pula em outras pernas, sente outros cheiros, late para cães que não sabia existir, vagueia livre sem um nome, grito ou assobio conhecidos. E, volta para casa faminto e assustado, dias depois, subserviente ao amor que tem tigelas de água e ração em plano seguro.
  Mas é, também, o cão que nunca mais voltou. O dono espalha cartazes, busca pelas ruas, chora dias seguidos. Nunca sabe se o cão não voltou porque não reencontrou o caminho ou se nunca mais quis voltar para o quintal. É não ter respostas e ouvir os latidos do cão nos sonhos por muitos anos, até só se lembrar que um dia teve um cão e o nome dele, mais nada.

  A vida é o carrossel iluminado no parque barato, rodeado de brinquedos ordinários, erguidos em um terreno afastado. Às vezes é bonito porque brilha, às vezes é triste porque quase ninguém vê só as luzes.
  Mas é sempre um carrossel com cavalos coloridos subindo e descendo em círculos. Às vezes embaixo, olhando para a terra batida, para os rostos desamparados dos funcionários sem expectativas de dias melhores, para os brinquedos descascados e seus os fios elétricos aparentes; às vezes no alto, olhando para as luzes e para as belezas vistas de cima, ouvindo os sons consoladores das gargalhadas e gritos das crianças.

  É a roupa no varal, a criança, a mãe, as digitais, o suor, as mãos que sempre voltam, os pés dourados e a cerveja, interrompida pelo choro, o choro interrompido por um desconhecido que salva uma mulher sem saber. É a maternidade em corda bamba, o amor mais seguro, mesmo no fio ao ar livre; é o cão que parte e volta e o que jamais retorna.  
  É um carrossel que não entendemos porque subimos, que ameaçamos  perder a vontade de continuar nele quando estamos embaixo, mas custamos muito a querer descer quando ele sobe. A vida é tudo que nos passa, fica um pouco e vai embora, mas também o que nunca nos abandona, mesmo se não ouvimos mais o seu latido. A vida um carrossel brilhante, rodeado de brinquedos ordinários.


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