domingo, 6 de janeiro de 2019

Estratégias para não se curvar ao medo

  Para afastar o medo desses dias que parecem demasiado estranhos e tentar a sutileza da liberdade, mesmo sem ignorar as sombras, deve-se andar pelas ruas com uma amiga ou duas, rirem sempre que possível, não para serem simpáticas aos transeuntes, mas sorrirem entre si, gargalharem até esquecerem do que acharam graça.  Querer rir do riso da outra, só sentir o contentamento de estar entre alegres. Escolherem um lugar para se sentarem e explorarem cardápios antes de pedirem o mesmo de sempre.
  Andar armada de bons dias passados juntas, pelos que virão e por esse que partilham agora, mesmo incômodos algumas horas. Andar acompanhada de afetos que não desaprenderam a sorrir, a amar, a ouvir e a se comoverem. Andar com amigas que também saibam chorar pelas dores que não são suas, sem censuras e que se deixem contaminar pelo riso que paira no dia.

  Carregar  um batom vermelho na bolsa, ou outra cor qualquer, e sacá-lo quando o cinza dos acontecimentos ameaçar empalidecer os lábios relaxados. Levar um livreto de poemas e proteger-se com ele, quando tentarem esvaziar a sua voz.
   Escolher a música do carro, do rádio, do bar, da casa, da rua, avançar a que não tocar a alma e deixar em máximo volume Elza, Chico, Tracy, Violeta, Gil, Omara, Gonzaguinha, Elis para emudecer o medo e convocar a coragem. Aprender a tocar o próprio tambor se quiser dançar a qualquer hora do dia.
 Soltar a mão das verdades, das absolutas  certezas e abraçar o possível inesperado. Manter-se atenta e ágil, mas principalmente, vigilante dos tesouros que eles roubam para não fazerem uso, porque desconhecem o valor: o prazer do ar fresco da madrugada, a mansidão vira-lata do cão de rua que a persegue para atravessar a rua sem perigo, o vento contra o corpo em um passeio de bicicleta no outono, o cheiro do pão morno saindo do saco de papel, os vizinhos idosos batendo na sua porta com seus doces de compota embrulhados para presente.  

  Olhar-se menos no espelho e mais através do reflexo dos olhos generosos dos que te amam, dos que sabem amar. Aprender a reconhecer quem está disposto a amar e ser amado, sem interesse outro que não do sentimento em si.
  Para não sucumbir  ao medo de perder  o amor e submetê-lo a materialidade das provas, entregar-se crédula, sem garantias - elas nunca existem - rasgar a desconfiança, deixar o ciúme arder numa fogueira solitária longínqua, abrir as janelas, as portas, entender a liberdade do sentimento, que atrofia se colocado em gaiola ou adestrado para o uso de coleira. Amar a quem nunca antes foi amado, a quem nunca se pensou poder amar, a quem nunca escreveu amor no tronco de uma árvore. Ajudar a encontrar o amor de quem não sabe que é possível o amar a si; amar sem futurologia, sem ideologia, sem negociatas, sem jogos de poder. Não ser empregado, escravo, nem subserviente a quem jura, mas não cumpre, a quem promete, mas acaba sempre tentando juntar os cacos do que foi quebrado. Poder amar e, mesmo assim, ir embora, porque dói ficar.

  Ter tempo, dar tempo, partilhar tempo, não guardar; saber que os tempos não voltam, aprender a construir novos. Ter tempo de repousar, caminhar, dançar, trabalhar, lavar louça e, de também, deixá-la na pia, enquanto usa o tempo para olhar a rua, o gato, o desenho do filho pendurado na geladeira ou a unha pintada.
  Cozinhar com calma para si e para alguém, conversarem longamente na cozinha, enquanto o assado não fica pronto; pausa para abrir o forno e espetar o garfo para ver se está macio.
  Usar o tempo para construir efemeridades: estourar bolhas no plástico, fazer bolas de sabão ou círculos com a fumaça do cigarro, usar os dedos para fazer cachos no cabelo de alguém ou no próprio. Deixar os dedos descobrirem os detalhes que passam tão rapidamente, mas que se sentidos nunca são perdidos completamente.

  Estar disposta ao aprendizado diário. Ser humilde e franca com as suas limitações ou ignorâncias, ser grata a quem ensina, aponta caminhos ou, simplesmente, torce e aplaude seus passos. Não ter vergonha de quem é, de quem quer ser, de quem a inspira, mas sabe ser impossível a cópia.
  Estar disposta a ensinar, a aprender ensinar, ser generosa com as falhas e ausências do outro, tanto quanto com as suas próprias. Querer partilhar a informação, a perspectiva, a leitura, a experiência, o resultado das suas pesquisas, mas não querer ser a voz uníssona, saber argumentar, ouvir e se sentar para esperar uma nova chance, se o que diz não atravessar ninguém. Estar disposta a esperar pelo tempo de ser compreendida; às vezes demora.  

  Saber desobedecer, quando necessário, não porque a ordem desagrada , mas porque fere o que de mais profundo você aprendeu a seguir. Desobedecer as placas, as regras, as normas, os chamados, as prescrições, se tirarem o seu sono e a sua paz, se para cumpri-los abrir uma ferida sem cura.
  Aprender a nadar, correr, dirigir, pilotar um avião, no caso de precisar fugir ou ajudar alguém a ser livre ou continuar vivo. Aprender a contar histórias, ouvir histórias, escrever histórias, no caso de precisar se apartar deste mundo para ser livre, continuar vivendo ou ajudar alguém com as mesmas necessidades. Ter linha, agulha e um pedaço de tecido para bordar cada uma das suas vitórias, que sejam pequenas e cotidianas, mas que alimentem os seus dias de dificuldade, quando o medo senta-se na beirada da sua cama e a assiste a se levantar e se vestir. 

  Para não paralisar diante da ameaça da sombra, é preciso rejeitar o desespero e o seu peso; se recusar a carregar o que não te pertence. Tem que dobrar as esquinas com cuidado, calma e sedenta de motivos para não entregar-se ao medo e as suas dezenas de braços. Tem que acordar disposta a conquistar o mínimo por dia e aprender a descansar da luta, mesmo quando falhar; para ter ânimo de recomeço.
  Para não perder a esperança quando gritam, ameaçam, incendeiam a tua aldeia e violentam os seus afetos, chamar a coragem para seguir ao lado do medo e esperar pacientemente o momento do drible, se colocar na área e tentar o gol. Reconhecer o seu lugar no time e o valor de cada jogador, mas principalmente: ninguém deve soltar a mão de ninguém.





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