sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Muitos cafés depois e um avião para Salvador

  Coador de pano, pó de café moído no quintal da casa da mãe. Chaleira vermelha com água quente, o
sol entrando pelos desenhos vazados da cortininha de renda e iluminando figuras no chão da cozinha. Conversa fervida em água com açúcar, cheiro de café e depois, um silêncio comprido e amoroso. O pai morreu quando era pequena, ela e a irmã foram, até agora, a família completa junto com a mãe.
   Beberica o café puro na beira do fogão, antes de se sentar à mesa com as outras duas moradoras da casa. O primeiro café do dia é mais do que  aroma e sabor, são as raízes, os sonhos que ela traz na camisola, a ligação com as mulheres que a sustentam tranquila. Teve sempre tanto medo. Tem medo nos olhos ainda.
  A mãe é pequena, franzina, mas tem força nas palavras,  curiosidade juvenil,  sabedoria dos antigos e é muito bem informada. A irmã é mais nova, morena e mais extrovertida. Ambas dão a ela um chão seguro, para equilibrar suas xícaras.
  Ela é loira, um pouco sem brilho, numa cor meio reta, sem sardas. Terminou o ensino fundamental, não precisa mais se levantar tão cedo para ir à escola. Decidiu que não quer estudar mais. Dois dias para o casamento e toma mais café quando pensa que terá que entrar na igreja com todos a olhando.
  Ela tímida, ele sem jeito, os dois altos, ela com menos sorrisos públicos, ele com mais simpatia, mas as vozes de ambos se equalizam bem baixas; sussurram quando conversam na rua, mas falam bastante alto em casa. Eu os ouço.
  A irmã foi para a faculdade, ela se casou de branco, com um batom rosa cintilante, bochechas enrubescidas de blush e vergonha.

  Coador de papel, pó de café enviado pela mãe, já moído, no quintal que ela não varre mais. Leiteira de alumínio com água quente na trempe boa do fogão, o sol queimando as violetas sem flores na janela. Conversas comezinhas, com o marido, lavadas na pia, enquanto descongela a carne para o almoço.
- Traz moranga do mercado, quando estiver subindo? Vontade de comer moranga hoje. A da minha mãe, eu queria agora.
  Depois um silêncio curto, interrompido por uma resposta suspirada:
- Tá na última gaveta, junto com os documentos do carro.
  A barriga, já muito pesada, abrevia o seu tempo de tomar café em frente ao fogão, se senta e toma café com o seu homem, enquanto sente saudades da mãe e irmã. Com ele as conversas parecem durar menos, serem mais apressadas.

  Cafeteira elétrica, pó de café do supermercado. O sol alimentando de luz a sua pequena hortinha vertical na parede da cozinha. Cheiro de café, depois que a tomada é ligada, o leite fervido na trempe boa do fogão, o filho engatinha pelo chão da cozinha e se parece muito com o pai. Depois aprende a andar, a falar - e fala muito com os vizinhos - cresce mais um pouco e já vai à escola. Agora já toma café com ela e o pai na mesa da cozinha e o silêncio dos dois é amenizado pela urgência de fala do menino. Ele carrega a responsabilidade de comunicação da sua família. A mãe só fala quando está entre conhecidos, o pai prefere os distantes, o menino fala com tudo, em qualquer lugar, a qualquer hora. Quando o casal briga na noite anterior, o pai sai mais cedo para o trabalho no outro dia e é o filho quem toma café com ela, enquanto ela sente saudade da mãe, da irmã e da camisola em que os seus sonhos se dependuravam até o dia.
  Despeja mais café na xícara trincada e pensa na felicidade que achou que teria e talvez tenha tido, mas parece tão rara que não sabe se é mesmo felicidade, se só a dela é curta e passageira assim ou se a de todo mundo é e ela não sabe, porque só conversa com o homem alto sem graça e com o filho falante.

 Máquina de café expresso que a irmã mandou de aniversário, junto de uma caixa com centenas de cápsulas. Faz um café de cada vez, o filho às vezes quer outras não, o marido prefere o da padaria.
- Vou tomar meu pingado na rua.
  O sol entra pela janela da cozinha e ilumina a cabeça cacheada do seu único filho. Vai dar um cachorro a ele para fazer companhia quando não estiver na escola. Pensa, enquanto toma seu segundo café. Filhote fêmea. Passa a tomar seus cafés com a cadela, enquanto fala  sobre a saudade da mãe e da irmã. Os silêncios compridos e amorosos voltaram à sua cozinha, desde a chegada da cadela.
  Mas começa a ter tristezas que não vão embora quando o seu homem está e felicidades incomunicáveis, enquanto ele não chega. Será que mãe sentiu isso pelo seu pai?

  Nos últimos dias, depois do natal, ela parece ter conquistado uma altivez, uma independência, uma força que só o café da casa da mãe parecia dar. Olhos de uma brancura diferente, um brilho, uma assertividade, uma resolução acontecida ontem. Saiu muitos dias da semana para fazer compras, deu várias instruções ao filho: de como fechar o gás, preparar o próprio café, aguar a horta, alimentar e levar para passeios diários a cadela.
  Não tem conversado com o homem, não se entendem mais mesmo. Mas ainda dividem a trempe boa do fogão.
  O filho está de férias e ela avisa que ele irá com ela até o aeroporto. São dias de planos, ajustes e recomendações ao filho, para ele mesmo, e algumas que ele deve repassar ao pai. Ela tem quarenta anos e vai viajar, pela primeira vez, de avião. Em quinze anos, terá o seu primeiro réveillon sem o filho e depois de seis anos, não tomará o seu café diário com a cadela.

  Chega em Salvador e a irmã a espera no aeroporto, a convida para um café. A mão da mãe não colhe mais cafés nem acaricia seus cabelos, o ouvido da mãe que às vezes parece próximo e outras não,  mas as irmãs brindam todos os cafés em sua homenagem.
  O filho, a cadela e o marido ficam no ano anterior, junto com milhares de cafés. Um deles não estará na sua cozinha quando ela voltar. Foi combinado assim, ela sabe, mas doerá.
  Enquanto assiste aos fogos na orla, pensa nos  instantes de vastidão de pequenos acontecimentos, a maioria deles uma repetição cotidiana, que atropelam, pedem urgência a cada esquina e não parecem importantes ao final do dia. Mas é tudo o que temos em abundância. Fogos coloridos e luminosos, apontando no céu. A próxima chuva eles não verão juntos, nem sob a próxima lua eles dormirão abraçados. Cansados e atentos; ríspidos e delicados; seguros e vulneráveis. Foram o que puderam e pelo tempo que conseguiram  inventar juntos. Enquanto ela fazia o café, a azia no estômago dele consumia seu gosto por ela e ela já nem queria mais um final feliz, porque eles não sabiam mais como serem felizes juntos.

  Ela inventou uma felicidade plena que não chegou, não em plenitude como imaginou. Ela foi, a cozinha ficou sem ela por alguns dias. Ela deixou o filho e ele sobreviveu muito bem. Ela tem quarenta e, pela primeira vez, não faz café todos os dias. A vida em suas temporadas assistidas por outros e ignoradas por nós; quando uma acaba é sinal de que a outra se aproxima.
  Café expresso do aeroporto, segura a xícara e se lembra do quintal, onde a mãe colhia o café. Como era bom o café com o gosto das mãos da mãe. Como são bons também os outros gostos. Só isso passou pela sua cabeça,  enquanto olhava o sol da Bahia, atravessando os vidros no aeroporto. O ano é outro e ela voltará esta madrugada para casa; que não vai ser a mesma. Ela também não.



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