quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

O vinho tinto de sede

    Sentados na calçada,  cinco da tarde, véspera de feriado, ainda faz sol e os dois homens suados parecem brilhar sob os últimos raios antes da chuva, que a previsão mais cedo, na TV, anunciou. Parecem dois meninos que abriram seus presentes de natal antes do tempo, não olham para os lados, não se distraem com nada que não esteja em suas mãos e sentem prazer em arriscar escolhas. Concentrados na brincadeira, só sorriem depois de terminada cada fase do jogo.
- Este pode ser seu e eu fico com esse.
- Pêssego em calda, quer? Não gosto de doce. Fica com ele.
- Esse aqui é macarrão, posso ficar? Faço para ceia hoje.
- Então leva o molho também!
- Boa! E você fica com o arroz.
  Juntos, pensam no cardápio para duas ceias com os itens de uma cesta de Natal.

  O mais alto deles eu sempre vejo,  fica entre essa e outras três ruas paralelas, oferecendo pequenos serviços: carregar compras, aparar os pequenos jardins, descarregar caminhões de mudanças e até correr atrás do cão que foge dia sim e outro talvez, ele corre, alcança e o captura com mais habilidade do que a dona. Os pequenos serviços são remunerados na hora, as moedas ele guarda nos bolsos traseiros da calça jeans, as notas ficam nos bolsos da camisa, se tem bolsos, ou nos bolsos da frente da calça, se está de camiseta. 
  Além das notas e moedas, recebe também roupas e calçados usados, pedaços de bolos, vasilhas com algum alimento pronto, garrafas de água, copos de suco, pão com algum recheio e muitas canecas de café. O outro eu ainda não tinha visto ou talvez só tenha o olhado; o que é sempre possível.
   Agora, dividem uma cesta de natal, um para mim e outro para você. A difícil partilha de itens diferentes; alguém sempre poderá se sentir injustiçado. Não há discussões, daqui da janela, só sinto e ouço as pequenas alegrias de um presente de Natal. Compartilham seus gostos, um não toma café e o outro gosta todos os dias; um não come doces porque o pai morreu de diabetes, o outro não come alho; um confessa o desejo de ir a um restaurante de bacana para comemorar o aniversário de trinta anos; eu achava que ele já passava dos cinquenta.

  Depois, começam a partilhar detalhes da vida, enquanto separam o óleo para um e a margarina para o outro. O mais alto veio do Rio de Janeiro há cinco anos, era taxista, perdeu a sua licença, depois o carro e por último a habilitação. Tem dois filhos, mas só viu um nascer, isso há oito anos, ia visitar sempre, mas parou e do outro só soube que tem o nome do ex-sogro vascaíno de quem nunca gostou.
- Velho antipático. Intrometido.
Da sua história eu sabia que tinha família e alguma patologia psiquiátrica. Já foi internado algumas vezes. Traz as compras e conta histórias

  O outro parece mais jovem, disse que trabalhava de ajudante de pedreiro, tinha uma noiva, mãe, pai, três irmãs e dois sobrinhos; é de um bairro da zona leste da cidade.
- Mas entrei numas paradas meio erradas e aí já viu, né? Caí, irmão!
- Já fiquei com o pêssego, quer os bombons?
- Não como doce.
- Dá para alguém então!
- Não tenho para quem dar.
  Prosseguem com o jogo, reiniciam a partida depois de alguns minutos de confidências. São dois homens-meninos, sob o sol de dezembro, vestindo um pouco da felicidade pasteurizada dos comerciais de final de ano. Caminham com a  mesma sorte de todos nós; sobrevivem em meio às ausências; alegram-se com as pequenas surpresas de que os humanos ainda são capazes e projetam felizes futuros para os dias seguintes.


   As peças do jogo já estão quase todas definidas, apontando para uma partida de cavalheiros; nenhuma disputa acirrada, nenhum conflito. Quatro sacolas cheias, duas para cada lado e uma caixa quase vazia.
- Falta o vinho. Posso ficar?
- Poxa, irmão, de olho nesse vinho, hein!?
- Você já ficou com os doces, deixa eu dar uma emoção na minha ceia... 
 - Sobremesa é beleza, mas nem ligo tanto. Mas de bico seco, passar o natal sozinho é dureza irmão!
- Mas tu tem família aqui, por que passar sozinho?
- Tem e num tem, né? Tem, mas no mole a gente perde.
- Pô...tudo que eu queria era dar uma relaxada hoje.
- Vamo dividir então! Cadê...vou pedir uma garrafinha em alguma casa e a gente divide.
   A mão mais nova abre a garrafa com toda sede do mundo, antes de despejarem o líquido ardente no recipiente de plástico, o mais alto oferece o bico da garrafa para o outro que aceita um gole, ele devolve a gentileza e o mais alto educadamente também aceita e dá o seu vigoroso gole.

   Na calçada, o brilho na garrafa é intenso e as duas bocas se revezam no mesmo bico. Duas sacolas de cada lado e a partilha do vinho antes da meia noite parece ser tão sagrado quanto no púlpito, em que eu assistia quando pequena.
   Dividiram o vinho, dividiram a fome e a prosperidade de uma cesta natalina. O pêssego em calda, a caixa de bombons, a massa, o óleo e a margarina e só tiveram dúvida quanto ao vinho, mas se resolveram logo. Beberam até a última gota, não falaram muito mais, mas se alegraram como numa festa de amigos antigos.
  Minutos depois, se despediram e desejaram uma boa ceia e um feliz natal. Desceram a rua sóbrios, ainda, seguiram caminhos diferentes depois da esquina e eu não os vi, de novo, até agora. Pensei neles à meia noite, quis beber também à meia noite. Assisti a minha solidão na deles, curei a minha falta na garganta deles.

  Ninguém é inteiramente só. A solidão é provisória, a partilha é que constante, mudam os sujeitos e os objetos ou afetos partilhados.
  Ninguém é inteiramente perdido de si e dos outros, existem as memórias, as involuntárias e as inventadas - eu crio muitas - existem também as muitas possibilidades de volta e perdão. 
  A nossa sede é universal; mas pode ser curada com meia garrafa, algumas confidências e uma pequena ceia planejada de última hora.
  Eu senti o gosto do vinho às cinco horas da tarde e à meia noite o gosto bom voltou à minha boca.
Beber o natal com os dois reis magos; que sorte.
  Viajo numa caravana em que nem sempre enxergo estrela; mas caminho porque acredito na estrela, muito além do que posso ver. Eu e os dois reis magos, eles vão com o vinho, eu vou com a fé.



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