sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Essa noite eu sonhei que o fogo acendia, mas não queimava

  Essa noite eu sonhei que o buraco continuava vazio, mas não doía. Não buscava escondê-lo, não tentava costurá-lo, não queria ocupá-lo com terra ou flor. O buraco era um vazio que não requisitava preenchimento, pelo contrário, exibia seu espaço de ausências e aceitava só sê-lo.
  No mesmo sonho, eu me encantava com a lua e me satisfazia com o encantamento em si mesmo, sem necessidade de partilha urgente. Não saquei câmera nem solidão; não abri vinho nem falei ao telefone. Éramos somente eu e a lua; distintas e plenas na imensidão que nos isola ao mesmo tempo que nos aproxima de tantos céus.

  Essa noite eu sonhei que sonhava. Era um sonho dentro do meu sonho. E nesse sonho, eu era abandonada, mas eu não me sentia sozinha, nem magoada, nem com medo. Eu só levantava a mão e abanava a partida, como se soubesse que era inevitável ficar e assistir ao outro ir. Ninguém chorava e eu não me preparava para ser pedra, eu continuava pluma.
  Na noite do sonho, a cama não era tão dura, que eu não pudesse me aconchegar, nem demasiado macia, que eu não pudesse esticar a coluna.

  Essa noite eu não tinha um nome, não atendia a um telefonema, não recebia cartas com um endereço escrito no verso de um envelope lacrado. Eu era uma, eu era outra, eu era muitas num só tempo; e todas só respondiam aos chamados que quisessem ouvir.
  Essa noite eu sonhei com a verdade e ela não era tranquila, inquietava; desestabilizava o terreno e afastava certezas. Mas a verdade não ofendia. Ela não estava vestida nem calçada e tinha muitas faces, de nenhuma delas eu desviava o olhar. A verdade não me subjugava nem me adulava; a verdade só dizia o que devia e pisava descalça e assertiva nas mentiras que eu carregava nos ombros.
  Essa noite eu sonhei com a maturidade e ela não era velha, pelo contrário, tinha músculos treinados, visão calibrada, muitos planos e uma pele macia. A maturidade tinha uma voz sensata de mãe, mas com a doçura de uma prima mais nova. A maturidade me aconselhava a não insistir naquilo que precisa terminar para ser. A maturidade me mostrava muitos caminhos dentro de um caminho.

  Essa noite eu sonhei com o amor e ele não era redentor de nada. Não era pomba branca, coração vermelho, buquê de girassóis amarrado em fita de linho cru. Não era herói de capa, não era mestre que alfabetiza, não era nenhum defensor da justiça para todos.
  Era mesmo só o amor: sorrateiro, inexplicável, descontrolado, desejado, imitado, temido, ludibriado, impaciente e tolerante. Era só o amor numa quarta-feira, véspera de feriado, levando as crianças para a escola sem ter tempo de pentear os cabelos delas, segurando um bolo que talvez tenha solado e que será servido na reunião de pais.
  Era o amor na suas múltiplas formas: era invisível e indiscreto; era individual, em duplas, trios ou grandes grupos; era exclusivo e popular. Era uma mão macia no cabelo e um dedo em riste pedindo silêncio para o bebê não acordar. Era grinalda e jeans; era infinito enquanto instante. Era mão, mas também era perna para seguir.

  Essa noite eu sonhei com bicicletas e estradas; com pontes e travessias; com  pernas e chão de terra, sem pavimentação; com encruzilhadas e decisões comemoradas, com janelas cheias e quintais vazios. Sonhei com lágrimas e canções domésticas.
  Sonhei com  homens e dragões, os primeiros cuspiam  fogo e os outros só pediam calma. Essa noite eu sonhei com baleias, estrelas do mar e suspeitas que atravessam encontros. Sonhei com nuvens que se desmantelam no olhar e raios que iluminam o cinza de dezembro. Sonhei que não era fácil, mas era muito bom.

  Essa noite eu sonhei com gaiolas abertas, meu vazio intranquilo, os nossos pássaros não sendo nossos; o meu nome plural.
  Essa noite eu sonhei com um tempo em que eu não me afastava do passado, eu caminhava e ele, atado às minhas novas conquistas, me seguia sem pesar, sem cobrar mesuras de gratidão. Essa noite eu sonhei que acendia o fogo, mas ele não queimava; que a chuva precipitava, mas o fogo não recolhia suas labaredas.
  Essa noite eu sonhei que o amor me espreitava e o sonho, dentro do sonho, me ensinava a caminhar sem medo. Essa noite, eu sonhei que eu mesma acendia o fogo e não queimava mais as minhas mãos.



4 comentários:

Bel disse...

essa música me lembrou meu avô, recifense, minha história, eu mudadeira de cidades e estados... rs

Paulo Abreu disse...

Minas gerais, quase Natal de 2019

Profª Amanda

Nada a acrescentar, seus sonhos são fantásticos. Sonhar com o amor! Não é para principiantes, decididamente não é. Nos sonhos o amor está no seu estado natural, com todos os seus defeitos, qualidades, virtudes e rompantes, e você os definiu muito elegantemente bem.

Aproveitando o espaço, agradeço suas palavras no meu pequeno reino - estou com problemas nos comentários - não consigo responder - já enviei reclames, etc etc. Mas estou grato.

E assim, vamos fechando mais um ano, vamos para o oitavo ano de reinos vizinhos, já que aqui me sinto como saindo do portão e encontrando a vizinha no seu portão.

Um abraço, Amanda
Feliz Natal!

Amanda Machado disse...

Bel,
essa música me pareceu familiar, também me lembrou algo que eu nem sei bem o quê; mesmo que eu não tenha tido um avô recifense. Ainda bem que mudou uma vez para cá...assim foi o nosso encontro. Um bom e feliz ano para nós!
Quem sabe vamos à Recife?
Beijos

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, pós-natal de 2019
Querido Paulo,

é uma felicidade a sua existência e eu ter tomado conhecimento dela e do seu reino tão aprazível. Nossos reinos próximos também ajuda na manutenção do meu...é bom ter vizinhos tão gentis.

Grata por mais esse ano (imensamente difícil, mas com surpresas tão ternas - a vida é esse movimento, não?)

Abraços,
Um renovado e esperançoso 2020!
Amanda