sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

A vida não é justa, moça. A vida é um traço ingovernável.

 Querida moça,
ainda não me conhece, embora sei que espera muito de mim e que constrói, diariamente, sonhos  com detalhes tão nítidos que às vezes nos enganamos e embarcamos um pouco neles. Vive, agora nesse momento em que me lê, sobretudo de planos grandiosos e um tanto improváveis.
  Deposita em mim a expectativa de conquistas das quais nem nos lembraremos no futuro. Persegue amanhãs como balões cheios de gás hélio, na corrida para alcançá-los se distrairá com outros desejos e nem se lamentará por eles, quando sumirem no céu sem deixarem nenhum rastro para trás. É disso que os futuros sonhados são feitos: gás hélio, envolto em película colorida. Fogem, voam um pouco e estouram assim que atingem a atmosfera que não enxergamos. O futuro sempre escapará de nós; duas ou três voltas do barbante nas mãos não fará diferença. Ele voa, sempre voará.

  Não seremos para sempre boas uma com a outra, teremos conflitos absurdos, mas saberemos sempre a verdade uma da outra: a força delicada e a bruta , o afago, a rigidez, o afeto, os traumas, o conhecimento mais profundo sobre as nossas dores; seremos aquele quadro do qual nós duas gostamos tanto: As Duas Fridas. Diferentes e inseparáveis; uma artéria vital que liga as duas.
  Você faz escolhas, defesas, toma partidos que eu recusarei na próxima esquina; não todos, manteremos algumas disposições, alguns quadros na nossa galeria.
  Os excessos da sua mãe farão sentido para mim antes da minha maternidade, os silêncios do seu pai serão partilhados tão amorosamente por mim, que você não pode vislumbrar ainda. Será tia; não a que imagina, mas a possível, a limitada, a errante. Sua irmã será ainda melhor para mim, o passado de vocês será uma raiz indestrutível, embora abalável. Seu irmão será seu pai para suas sobrinhas e isso me emociona sempre; você também choraria. 

  Cara conhecida, hoje acabou o segundo dia do ano distante para você umas duas décadas e a vizinha que você não conhece, do apartamento que ainda não existe, no bairro que você pouco visitou, reclama das mesmas situações do ano passado. Um ano inteiro tentando não ser feita de boba - expressão dela essa - e na noite da virada recebeu o que mais temia, mais mentiras, mais contratempos, mais solidão. E é assim que se desenha a existência de todas nós: tememos o que já está impregnado em nós, resistimos o que é nosso e buscamos os inimigos em combates que não são nossos. Parece complicado para você, agora? Resumindo: ela é boba. Não quer ser feita de boba, mas ela é. E não estou tripudiando da bobeira dela; pelo contrário, lamento muitíssimo ela não abraçá-la. Só a bobagem poderá salvá-la de tanto medo.
  Hoje, um amigo seu, que você ainda não conhece, mas a quem será grata por toda a vida,  desistiu de um sonho, ele está triste, eu sei e tentei buscar em você inspiração para consolá-lo. Em você, porque sei que, recentemente, você teve um sonho partido também e que vinte anos depois não restará cacos na cozinha, só a lembrança de embalá-los com jornal e fita, para irem seguros no lixo.

  A vida não é justa, moça e moço amigo da moça. A vida é caminho cheio de surpresas, cujas negativas sempre apontarão para outras trilhas. E isto é o que ela tem de mais dolorido e bonito. A vida é um traço ingovernável. É colocar o lápis no papel e não ter nenhum controle sobre para onde os traços levarão a sua mão. A vida é incrivelmente indeterminada e a conduzirá por lugares jamais sonhados por você agora. A vida é quem inventa o tempo de desaparecer e encher novos balões.
  Relendo o seu livro favorito, que também é o meu, vinte anos depois, revi nossos caminhos, quis partilhar uma pouco da minha paz com você, tão desnorteada ainda; quis consolá-la sem muita certeza de cura, só fé, diferente na natureza da crença que você tem agora, mas igual na intensidade.

  Quis criar maior intimidade com você hoje, quando vi seus vestígios no papel,  contar das suas rupturas, seus vazios, dos abandonos que sofrerá e que produzirá, quis falar das laranjas doces no verão, das amizades que duram até hoje, das que você nunca mais saberá. Quis falar sobre o amor que não virá e daquele que pode ser que chegue; mas sem estragar a surpresa. Quis contar que a mudança é inevitável e que isso é também obra da vida; mudar sempre. Quis contar para não insistir no inglês, eu não fui capaz de me dedicar, não aprendi a nadar nem a andar de bicicleta, mas aprendi coragem, voar mais vezes e com maior altura e profundidade - no sentido metafórico, obviamente. Aprendi a fazer rabanadas, assar aves de natal e a beber álcool, quer dizer, esse último eu não faço bem, mas pratico eventualmente.

  Querida moça, não sei tudo sobre nós, ainda há muitas outras por vir. Portanto, também são estranhas a mim. O único aprendizado que tenho sobre esse percurso é esse, mudamos tanto, mas nos reconhecemos ainda, nos afastamos tanto do caminho sonhado, mas aprendemos a amar outros e outros balões.
  Nos maltratamos às vezes, mas cada vez menos com o tempo que colhemos. Nos apaixonamos às vezes, mas variamos menos de pessoas e aumentamos os modos de fazê-lo, a medida que mais tempo  nos alcança. No mais, sonhamos sempre, planejamos ainda muito, mas ficamos menos desoladas quando alguma porta não se abre para nós. Saberá das janelas e das outras portas. 

  Abraços,

PS: antes que eu me esqueça, relendo o nosso livro, tive tanto orgulho de quem você é; os grifos, as palavras desconhecidas pesquisadas em dicionário impresso e metodicamente anotadas nas margens das páginas, com a caligrafia muito mais bonita do que a minha; suas exclamações no fim de algum trecho favorito, suas sinopses no final do livro - nas páginas em branco. Tudo isso me fez ter uma ternura enorme por você .
  E, por algum motivo, suspeito que você, se pudesse, também se orgulharia de quem sou ou você se tornou. Os balões continuam escapando das nossas mãos, perseguimos fantasias durante o dia, mas dividimos os lençóis com os nossos sonhos durante as noites.



2 comentários:

Sofia de Buteco disse...

Este texto parece para mim rs. Qual o seu livro? Um beijo, a Amanda de acá

Amanda Machado disse...

E é! Todos são, Amanda. É só chamar de seu e eles vão até você, são feitos apenas para isso: serem de quem os quiserem...

O livro é "A Rua amarela", da Veza Canetti. Por algum motivo, que conscientemente ainda desconheço, é uma leitura que me atravessa profundamente... muito louco isso, muito bom de sentir também.
Beijos! Um ótimo ano para nós!