segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Aproveita que você já se feriu e enfrenta

   Aproveita que você está em pé e traz um copo d'água para mim. Pura. Nada de açúcar, porque o que eu não quero é me acalmar. Despoluída, sem bactérias, sem julgamentos, sem mágoas, sem contaminação de qualquer espécie.
  Um copo de água comum, em recipiente de vidro reaproveitado.
  Eu quero um copo com a água que vai matar a minha sede ancestral e que afastará da minha boca, da minha língua e dos meus dentes a aridez das palavras duras nesse tempo de estiagem de gentilezas.
  Aproveita que vai trazer a água e me traz também respostas: para onde o amor vai depois que foge numa madrugada chuvosa?

  Aproveita o seu cansaço e deita hoje; desiste amanhã, se não passar. Mas, hoje, deita a cabeça em um travesseiro macio, no quarto quase escuro, fecha os olhos e espera a mente, os poucos, silenciar. No começo ela vai continuar falando, lançando questões insolúveis, repassando cenas dúbias, mas depois da agitação da pedra jogada, as águas cessam as ondulações e serenam.
  Aproveita a sua desesperança para repousar na dúvida e acordar do medo. Se recolhe um pouco e amanhã você volta a sonhar na luta.

  Aproveita que você tem um nó na garganta e, delicadamente, desfaça-o em lágrimas. Se o acúmulo for grande, pode ser que transborde. Não há perigo, transborde aqui, agora e em qualquer lugar, porque ninguém morre afogado quando desagua; mas mata algo em si, se represa.
  Aproveita o choro e lava as suas culpas, os seus rancores, os seus medos; lava tudo em água corrente e solte todos na direção da correnteza, não precisa afogá-los, é só soltar que eles descem cercados pelas águas do seu pranto lenitivo.
  Aproveita a infelicidade acumulada que você derrama e abra espaço para as alegrias; as grandes e sonhadas; mas, principalmente, para as pequenas e abundantes. Lembra das cores das hortênsias no jardim da rua debaixo; do cheiro do café, passando pelo filtro ainda; do vento, soprando os seus cabelos, na descida íngreme de bicicleta; no voo na garupa da motocicleta e na coragem da direção dela. Só lembra; e as alegrias voltarão a te procurar.

  Aproveita que vai esperar pela consulta e lê meu livro; ele não cura, mas também não adoece. Ou leia qualquer outro livro ou um site de poesias, mas leia, se alimente de palavras e você se sentirá cada dia mais fortalecida de beleza e esperança. Então, senta e não se incomode com as esperas, é o tempo se abrindo para você fazer dele uma ontra coisa que não seja angústia.
  Aproveita a literatura e queira ser outra, tente ser outra, invista em ser a mesma, mas outra. Aproveita a poesia escrita e a procure no seu cotidiano; nas listas do supermercado, nas filas do banco, nas tardes em que sai mais cedo do trabalho e tem tempo de ir para casa caminhando; veja o prédio sendo construído, é assim que também fazem os sonetos. Pedreiros constroem casas, prisões e muros; poetas inventam caminhos, liberdades e voos.
  Aproveita que vai esperar e seja compreensiva, perdoa os atrasos dos outros, os seus e os da vida com você; os atrasos nos dão um outro tempo, um tempo amadurecido pelo susto e pela expectativa de talvez não chegar. Então, se chega, seja grata por ter vindo, não faça cálculos com os minutos frios do relógio da sala.

  Aproveita que está infeliz com o seu país e mude. Não se mude. Mas mude-o. Se aproxime de quem como você não vê futuro na direção imposta e invente resistências. Ninguém está sozinha.
  Aproveita a sua tristeza e pense em quem não pode escolher não ficar e fique. Seja a mão que não solta a mão de ninguém. Seja cúmplice, seja solidária, seja a irmã, a amiga, a parceira de estratégias, a companheira de luta e não a desertora.
 Aproveita que conhece a história e não se cale, não se sujeite, não seja covarde para se proteger; ninguém está livre da injustiça. Seja livre e, ao mesmo tempo, comprometida. Se comprometa com a vida; em qualquer forma e situação.
   Aproveita essa caneta, esse pincel, esse microfone, essa agulha, esse nome, essa voz, essa coragem, esses músculos, esses dentes, essa febre e inspire; seja gentil, mas não seja obediente. A cura de um país é luta dos que ficam. Aproveita que você já se feriu e enfrenta.

  Aproveita que faz sol lá fora e abre a janela, as cortinas, chegue até a varanda, se lhe convier, e se arrisque um pouco mais até à rua. Deixe os raios de sol aquecerem os seus fios, entrarem luminosos nos seus poros, descarregar a energia da natureza no seu corpo; lhe fará muito bem.
  Aproveita que saiu e caminhe um pouco, pelos parques da cidade, cercados de árvores e crianças ou pelas ruas de carros e pessoas com roupas coloridas; converse com estranhos ou, pelo menos, ouça conversas de estranhos. Saber de outras vidas, minimiza os nossos conflitos e expande a nossa existência.
  Aproveita que é dia e abandone um pouco a sombra, o armário, o esconderijo e a máscara; só seja, sob o sol.

  Aproveita que o cão do vizinho é manso e o acaricie pelas grades do portão, agachada na calçada, sinta o pelo macio dele nos seus dedos e, depois, olhe bem para o rosto feliz de um cão; é todo amor. O cão é o ser que mais sabe demonstrar como é se sentir amado, entenda o cão e se não ver os mesmos olhos no espelho; procure a razão ou outros destinos que não esse pelo qual se embrenha. Ofereça a ele os seus dedos devotados, a sua solidão no dia, os segredos que não confidencia a ninguém, a sua contemplação pelo que é ser um cão. Se o vizinho chegar, aborde um assunto raso, se despeça do cão e do vizinho e guarde discrição da sua revelação; seu vizinho não vê esse mesmo amor no próprio cão, porque se acostumou a ele.
  Aproveita a sua epifania e tente não se acostumar a nada; estranhe tudo, absolutamente. Ouça o chamado pelo seu nome e não se vire de imediato; esqueça a casa onde mora e olhe para todas da rua, como possibilidades de um lar; contemple as bochechas do seu filho, os cílios longos dele que você não tem; estranhe o seu caminhar e os seus pés sobre o asfalto em uma mágica absurda, se assuste com os carros, ônibus, seus motores e rodas. Aproveita essa terça morna de janeiro e se assuste, se interrogue e se encante.
  Aproveita esse amor, que você aprende com o cão, e sele o cavalo, largue o escudo, a espada e cavalgue pelos campos que ele te levar; aproveita que vem de outras guerras, que já se feriu e enfrenta, lúcida, os muitos golpes a que todas estamos vulneráveis.


4 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 07 de Janeiro de 20X20

Professora Amanda,

Há algumas leituras venho admirando sua magistral capacidade de abordar o universo pela sororidade, pela gentileza do encanto feminino em apenso ao ser humana. Genial!!!

Arrisco dizer que é um caminho sem volta. Nunca mais outra vez de outra forma. É opinião pessoal, não necessariamente é a verdade.

Sucesso em 20X20, o ano em que fará contatos transdimensionais e digitalizados.

Feliz 20X20

Paulo Abreu

Sofia de Buteco disse...

Amanda, quem é você? Rs

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 19 de janeiro do ano de 2020

Caro amigo Paulo,
fui até ali pausar um pouco a rotina e cismar novas estratégias de sobrevivência para este ano, já tão assustador desde o seu começo. Mas li seu comentário no trajeto, ainda no ônibus, e foi bom, como sempre é, recebê-lo e pensar sobre ele.

Ando desejando afetos, ando gritando por generosidades e delicadezas...e esta pausa também me serviu para isso: alimentar minha alma de doces laços conquistados (e deliciosamente mantidos), ler e assistir às belezas (da natureza e aquelas as quais somos capazes de criar). E em uma delas, o maravilhoso livro de Valter Hugo Mãe, "O filho de mil homens", colhi a seguinte oração: "Tratava as coisas todas como se as coisas todas fossem para melhorar. Era triste que ninguém tivesse percebido isso até então". Talvez seja esse o caminho ao qual você generosamente me percebeu fazer: "tratar as coisas todas como se as coisas todas fossem para melhorar". Sororidade e feminismo é isto também.

Grata por me acompanhar neste pequeno intervalo. Abraços e um ano pleno de paz de espírito e vontade de luta.
Amanda

Amanda Machado disse...

Amanda,
eu sou a você que permanece aqui, enquanto você descobre aí! rs