É possível copiar os trejeitos de uma professora quase alegre, imitar dia após dia até não saber mais onde termina a imitação e começa a autoria; se existe autoria. Olhar por cima dos óculos que ela ainda não usa, escrever nos cadernos dos alunos coisas como "você é um excelente aluno..." quando queria escrever "seus olhos brilhantes me comovem todas as tardes" ou "suas piadas me enternecem como seu eu fosse uma mãe".É possível ir de cabelos penteados, pasta organizada, canetas coloridas e borrachas reserva para emprestar no dia da prova. É possível amar o desconhecido e amar mais depois de conhecê-lo. É possível também amar e desconhecer o nome do amor.
É possível subir todos os dias as escadas e deixar-se ser abraçada por dezenas de braços que se abrem tão espontaneamente, porque são ainda pequenos, até se tornarem grandes demais para a amplitude do gesto.
É possível imitar um sorriso branco para uma foto posada e posteriormente postada nalgum lugar. É sempre possível sorrir sem vontade, mas nos bastidores da foto encontrar um motivo para gargalhar é sempre tão melhor.
É possível imitar uma noiva de vestido branco, meia dúzia de damas de honra vestidas de lavanda, o cabelo preso num coque bonito, alguém que fale sobre o amor sem nem saber se há amor e lua de mel em Paris. É também possível imitar a noiva com o bolo que as irmãs fizeram, vestido emprestado e sem um celebrante muito culto e irem a pé para casa. É possível imitar um casal num café da manhã com croissants e geleias; só não é possível imitar aquele amor em que ambos estejam de pé ao lado do fogão, esperando a água do café ferver, enquanto a filha, de cabelos de nuvem, brinca com as visitas; esse amor transbordará a cozinha por anos.
Um pé depois do outro é possível imitar. Um copo depois do outro; e aprender a se curar das ressacas. Um amor depois do outro, até o coração não saber não mais amar. Amarrar cadarços, treinar os cães domésticos, esticar o lençol, soltar a mão da mágoa um dia qualquer, perdê-la no calçadão sábado de manhã.
É possível curar a gripe e inventar uma febre para não ir trabalhar amanhã; é possível imitar uma perna manca e dor para não fazer educação física hoje; inventar uma enxaqueca e não amar, mas não é recomendável não dizer que não ama, se já sabe.
É possível imitar os talheres certos de alguém, à mesa, que teve aulas de etiqueta, mas não é possível imitar o prazer do paladar.
É possível imitar ter a confiança, de volta depois de vê-la esfacelada por um carro, bicicleta ou gesto descuidado. Mas não é possível restaurá-la sem ver as marcas da queda.
É possível imitar um beijo de cinema, quando nunca beijamos antes; as mãos, os braços, as cabeças tortas e os estalar dos lábios. Mas não é possível imitar o frio na barriga no momento em que antecede ao beijo.
É possível imitar os passos de uma cirurgia, depois de passar anos numa faculdade de medicina, mas não é possível imitar empatia quando a paciente tem olhos de medo na mesa, antes da anestesia.
É possível imitar orações, mas fé não. É possível imitar condolências, mas a saudade não. É possível imitar um nome, mas a personalidade é única.
É possível imitar os gestos dos sentimentos, mas sentir não tem cópia possível. É possível sair todos os dias de casa cedo e imitar o que se espera de uma boa pessoa, mas não é possível enganar o coração que se carrega. É possível comemorar a felicidade de um amigo, mas ser feliz com essa felicidade só é possível entre muito amigos.
É possível imitar uma garça, um pato, um felino, um marsupial, mas só é possível ser humano ainda, ao menos por enquanto.
É possível imitar um alienígena, outros planetas, inventar o nome de uma constelação, mas não é possível mudar de planeta ainda.
Há que ter coragem e inventar um dia depois de outro dia. Há que ter estômago para imitar um dia depois do outro. Há que enganar a sede um copo depois do outro.
Há que criar esperança uma queda depois da outra. Há que se curar de um coração esfacelado, durante toda a vida sem se arrepender de tê-lo ofertado. Há de imitar um nascer do sol mais brilhante depois das chuvas; igual naquele samba "O sol há de brilhar..." só há.
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