domingo, 26 de janeiro de 2020

Só não é possível imitar aquele amor do café na cozinha

  É possível copiar os trejeitos de uma professora quase alegre, imitar dia após dia até não saber mais onde termina a imitação e começa a autoria; se existe autoria. Olhar por cima dos óculos que ela ainda não usa, escrever nos cadernos dos alunos coisas como "você é um excelente aluno..." quando queria escrever "seus olhos brilhantes me comovem todas as tardes" ou "suas piadas me enternecem como seu eu fosse uma mãe".

  É possível ir de cabelos penteados, pasta organizada, canetas coloridas e borrachas reserva para emprestar no dia da prova. É possível amar o desconhecido e amar mais depois de conhecê-lo. É possível também amar e desconhecer o nome do amor.
  É possível subir todos os dias as escadas e deixar-se ser abraçada por dezenas de braços que se abrem tão espontaneamente, porque são ainda pequenos, até se tornarem grandes demais para a amplitude do gesto. 

  É possível imitar um sorriso branco para uma foto posada e posteriormente postada nalgum lugar. É sempre possível sorrir sem vontade, mas nos bastidores da foto encontrar um motivo para gargalhar é sempre tão melhor.
  É possível imitar uma noiva de vestido branco, meia dúzia de damas de honra vestidas de lavanda, o cabelo preso num coque bonito, alguém que  fale sobre o amor sem nem saber se há amor e lua de mel em Paris. É também possível imitar a noiva com o bolo que as irmãs fizeram, vestido emprestado e sem um celebrante muito culto e irem a pé para casa. É possível imitar um casal num café da manhã com croissants e geleias; só não é possível imitar aquele amor em que ambos estejam de pé ao lado do fogão, esperando a água do café ferver, enquanto a filha, de cabelos de nuvem, brinca com as visitas; esse amor transbordará a cozinha por anos.

 Um pé depois do outro é possível imitar. Um copo depois do outro; e aprender a se curar das ressacas. Um amor depois do outro, até o coração não saber não mais amar. Amarrar cadarços, treinar os cães domésticos, esticar o lençol, soltar a mão da mágoa um dia qualquer, perdê-la no calçadão sábado de manhã.
  É possível curar a gripe e inventar uma febre para não ir trabalhar amanhã; é possível imitar uma perna manca e dor para não fazer educação física hoje; inventar uma enxaqueca e não amar, mas não é recomendável não dizer que não ama, se já sabe. 
 É possível imitar os talheres certos de alguém, à mesa, que teve aulas de etiqueta, mas não é possível imitar o prazer do paladar.

  É possível imitar ter a confiança, de volta depois de vê-la esfacelada por um carro, bicicleta ou gesto descuidado. Mas não é possível restaurá-la sem ver as marcas da queda.
  É possível imitar um beijo de cinema, quando nunca beijamos antes; as mãos, os braços, as cabeças tortas e os estalar dos lábios. Mas não é possível imitar o frio na barriga no momento em que antecede ao beijo.
  É possível imitar os passos de uma cirurgia, depois de passar anos numa faculdade de medicina, mas não é possível imitar empatia quando a paciente tem olhos de medo na mesa, antes da anestesia.
  É possível imitar orações, mas fé não. É possível imitar condolências, mas a saudade não. É possível imitar um nome, mas a personalidade é única.

  É possível imitar os gestos dos sentimentos, mas sentir não tem cópia possível. É possível sair todos os dias de casa cedo e imitar o que se espera de uma boa pessoa, mas não é possível enganar o coração que se carrega. É possível comemorar a felicidade de um amigo, mas ser feliz com essa felicidade só é possível entre muito amigos.
  É possível imitar uma garça, um pato, um felino, um marsupial, mas só é possível ser humano ainda, ao menos por enquanto.
  É possível imitar um alienígena, outros planetas, inventar o nome de uma constelação, mas não é possível mudar de planeta ainda.

  Há que ter coragem e inventar um dia depois de outro dia. Há que ter estômago para imitar um dia depois do outro. Há que enganar a sede um copo depois do outro.
  Há que criar esperança uma queda depois da outra. Há que se curar de um coração esfacelado, durante toda a vida sem se arrepender de tê-lo ofertado. Há de imitar um nascer do sol mais brilhante depois das chuvas;  igual naquele samba "O sol há de brilhar..." só há.



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