Adiar lavar a louça suja na pia e negociar com o gato um pedaço do sol para iluminar as unhas dos pés pintadas de vermelho, depois de tanto tempo repetindo o esmalte claro. Sonhar com um cigarro que nunca fumou e tragar profundamente, no lugar da fumaça, a liberdade da aceitação pela boca, laringe, traquéia, brônquios e alvéolos.
Adiar a resolução da louça suja e tomar mais uma xícara de calmaria, depois de desligar a urgência e ouvir o som da cidade, do prédio, dos vizinhos mais próximos, da barriga do gato, da sua respiração e entranhas.
Adiar estender a cama e contemplar os lençóis vazios de gente, amassados de espera, prósperos em futuros fantásticos. Não guardar o travesseiro, dobrar a manta, afofar o colchão, sem antes, desligar o medo e ouvir o próprio coração, intranquilo, mas conformado; ferido, mas esperançoso.
Adiar estender a colcha e gostar da nudez de um quarto pequeno e tão vasto, ao mesmo tempo. Não lavar o rosto, não escovar os dentes, não pentear os cabelos, não se ocupar da higiene de tocador, sem antes assistir a própria casa dormindo, enquanto vagueia pelo corredor recém-amanhecido.
Adiar estender a cama e se deitar de novo, se for preciso, para dar um desfecho ao sonho interrompido. Refazer o caminho onírico, inventar desvios, outras personagens que enriqueçam a trama e uma trilha sonora inspirada na música que ouvia antes de se deitar.
Adiar a conversa com o zelador e tentar, mais uma vez, apertar um pouco mais a torneira que pingou a noite inteira. Sentar-se na louça do banheiro e ouvir o concerto discreto da gota d'água na pia, acompanhar seus ritmos, seus caminhos desenhados até o ralo, o destino de ser gota que não salva nem limpa. Molhar as mãos, enquanto mede o nível do desperdício de água potável.
Adiar a manutenção da torneira, para acumular outros reparos: os riscos da unha do gato na porta da varanda, a maçaneta da porta da sala emperrada, uma janela que talvez se quebre algum dia.
Adiar a conversa com o zelador e apertar a torneira com a toalha de rosto do banheiro. Depois, um dia, chamo o zelador, por hora, a torneira se adapta à minha força.
Adiar o encontro com o zelador e ver, antes, a casa com os seus defeitos, a sua desordem, as rachaduras e transbordamentos.
Adiar a consulta à agenda e não ter de se submeter a uma linha em cada página. Decretar a página inteira dedicada a si, pelo menos, enquanto sonha em casa.
Adiar todos os compromissos que não resultem em flores; adiar compromissos que não arejem as ideias, adiar compromissos que não se deixem interromper pela poesia de existir.
Adiar a consulta ao aplicativo de mensagens e se lembrar, antes, das vozes que mais fazem falta, dos sussurros no ouvido, a intimidade sedutora; das gargalhadas, cicatrizadas dentro, de quem tanto se ama; dos conselhos da amiga mais sensata, das piadas da amiga mais engraçada.
Adiar a consulta à agenda e não responder aos e-mails que solicitam e não agradecem; que enumeram e não trazem textos bonitos, que apressam e não perguntam como está.
Adiar o sentido da vida lá fora e olhar com curiosidade e respeito para si e para dentro. Sentar no sofá, ligar o computador e só aceitar revisar o livro, porque ele é você. Ler cada parágrafo, se orgulhar em ser autora da própria vida e pensar em quantas solidões este amontoado de palavras, bem mais que isso, existências, frequentará.
Interromper o ritual de entrega, se levantar, ir até a cozinha, aquecer mais água para o próximo café e recomeçar o ciclo.
Preparar o pó no filtro, respirar o cheiro de café ancestral e, finalmente, aceitar que o amor é casa de trezentos quartos, onde mesmo a dúvida se abriga. Reconhecer que o gesto, que também se hospeda na grande casa, nasce antes da palavra e que esta última é quem acomoda o instante na eternidade.
Tomar café e esperar a próxima porta do amor se abrir.
No apartamento dos fundos de um prédio popular da cidade do interior, jurar todos os dias a honestidade com a qual se sonha, sentar-se no banco da delicadeza ao menos uma vez por dia; até que as suas pernas aprendam a chegar lá sozinhas
Fazer desse segundo o único, fazer da cozinha o reino de serenidade e beleza, do quarto, intimidade e poesia, dos adiamentos, a arma possível de resistência e protesto.
Aprender a gostar das manhãs sem sol e das noites, que a antecedem, cujo céu não exibe estrelas. Aprender a também gostar de vazios que são promessas.
2 comentários:
Minas Submersa, 24 de janeiro de 2020
Prezada Amanda
Que delícia de texto é este? A impressão que se tem que foi escrito enquanto escutava a Bidu Sayão fazendo valer sermos humanos com a Bachiana n°5.
Você é a Zélia Duncan da manifestação da existência apesar de!
Um abraço!
Paulo Abreu
Minas espoliada desde o ouro, 26 de janeiro de 2020
Caro Paulo,
vamos com o que temos e o que não temos inventamos! Amo Zélia! Amo essas mulheres que nos dão esperança de luta e beleza na arte.
Que privilégios a lembrança e a sua sempre comemorada visita por aqui.
Abraços,
Amanda
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