quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Aprender a gostar do céu que antecede ao dia de chuva

   Adiar lavar a louça suja na pia e tomar o café na xícara preferida, enquanto perscruta as riscas exatas dos azulejos antigos, descobre a sequência dos pontos do bordado do pano de prato - uma dúzia acarinhado pela mão materna. Com a xícara no ar, antes de encontrar a boca, encarar com generosidade as datas do calendário do  passado, ainda pendurado ao lado da geladeira. Assistir ao espetáculo das peças de roupa, dançando ao som do vento, no varal portátil instalado do lado de fora da janela da cozinha.

  Adiar lavar a louça suja na pia e negociar com o gato um pedaço do sol para iluminar as unhas dos pés pintadas de vermelho, depois de tanto tempo repetindo o esmalte claro. Sonhar com um cigarro que nunca fumou e tragar profundamente, no lugar da fumaça, a liberdade da aceitação pela boca, laringe, traquéia, brônquios e alvéolos.
  Adiar a resolução da louça suja e tomar mais uma xícara de calmaria, depois de desligar a urgência e ouvir o som da cidade, do prédio, dos vizinhos mais próximos, da barriga do gato, da sua respiração e entranhas.

  Adiar estender a cama e contemplar os lençóis vazios de gente, amassados de espera, prósperos em futuros fantásticos. Não guardar o travesseiro, dobrar a manta, afofar o colchão, sem antes, desligar o medo e ouvir o próprio coração, intranquilo, mas conformado; ferido, mas esperançoso.
  Adiar estender a colcha e gostar da nudez de um quarto pequeno e tão vasto, ao mesmo tempo. Não lavar o rosto, não escovar os dentes, não pentear os cabelos, não se ocupar da higiene de tocador, sem antes assistir a própria casa dormindo, enquanto vagueia pelo corredor recém-amanhecido.
  Adiar estender a cama e se deitar de novo, se for preciso, para dar um desfecho ao sonho interrompido. Refazer o caminho onírico, inventar desvios, outras personagens que enriqueçam a trama e uma trilha sonora inspirada na música que ouvia antes de se deitar.

  Adiar a conversa com o zelador e tentar, mais uma vez, apertar um pouco mais a torneira que pingou a noite inteira. Sentar-se na louça do banheiro e ouvir o concerto discreto da gota d'água na pia, acompanhar seus ritmos, seus caminhos desenhados até o ralo, o destino de ser gota que não salva nem limpa. Molhar as mãos, enquanto mede o nível do desperdício de água potável.
  Adiar a manutenção da torneira, para acumular outros reparos: os riscos da unha do gato na porta da varanda, a maçaneta da porta da sala emperrada, uma janela que talvez se quebre algum dia. 
  Adiar a conversa com o zelador e apertar a torneira com a toalha de rosto do banheiro. Depois, um dia, chamo o zelador, por hora, a torneira se adapta à minha força.
  Adiar o encontro com o zelador e ver, antes, a casa com os seus defeitos, a sua desordem, as rachaduras e transbordamentos.

  Adiar a consulta à agenda e não ter de se submeter a uma linha em cada página. Decretar a página inteira dedicada a si, pelo menos, enquanto sonha em casa.
 Adiar todos os compromissos que não resultem em flores; adiar compromissos que não arejem as ideias, adiar compromissos que não se deixem interromper pela poesia de existir.
  Adiar a consulta ao aplicativo de mensagens e se lembrar, antes, das vozes que mais fazem falta, dos sussurros no ouvido, a intimidade sedutora; das gargalhadas, cicatrizadas dentro, de quem tanto se ama; dos conselhos da amiga mais sensata, das piadas da amiga mais engraçada.
  Adiar a consulta à agenda e não responder aos e-mails que solicitam e não agradecem; que enumeram e não trazem textos bonitos, que apressam e não perguntam como está.

  Adiar o sentido da vida lá fora e olhar com curiosidade e respeito para si e para dentro. Sentar no sofá, ligar o computador e só aceitar revisar o livro, porque ele é você. Ler cada parágrafo, se orgulhar em ser autora da própria vida e pensar em quantas solidões este amontoado de palavras, bem mais que isso,  existências, frequentará.
  Interromper o ritual de entrega, se levantar, ir até a cozinha, aquecer mais água para o próximo café e recomeçar o ciclo.
 Preparar o pó no filtro, respirar o cheiro de café ancestral e, finalmente, aceitar que o amor é casa de trezentos quartos, onde mesmo  a dúvida se abriga. Reconhecer que o gesto, que também se hospeda na grande casa, nasce antes da palavra e que esta última é quem acomoda o instante na eternidade.
  Tomar café e esperar a próxima porta do amor se abrir.

  No apartamento dos fundos de um prédio popular da cidade do interior, jurar todos os dias a honestidade com a qual se sonha, sentar-se no banco da delicadeza ao menos uma vez por dia; até que as suas pernas aprendam a chegar lá sozinhas
  Fazer desse segundo o único, fazer da cozinha o reino de serenidade e beleza, do quarto, intimidade e poesia, dos adiamentos, a arma possível de resistência e protesto.
  Aprender a gostar das manhãs sem sol e das noites, que a antecedem, cujo céu não exibe estrelas. Aprender a também gostar de vazios que são promessas.


2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Submersa, 24 de janeiro de 2020

Prezada Amanda

Que delícia de texto é este? A impressão que se tem que foi escrito enquanto escutava a Bidu Sayão fazendo valer sermos humanos com a Bachiana n°5.

Você é a Zélia Duncan da manifestação da existência apesar de!

Um abraço!

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas espoliada desde o ouro, 26 de janeiro de 2020

Caro Paulo,
vamos com o que temos e o que não temos inventamos! Amo Zélia! Amo essas mulheres que nos dão esperança de luta e beleza na arte.
Que privilégios a lembrança e a sua sempre comemorada visita por aqui.
Abraços,
Amanda