domingo, 9 de fevereiro de 2020

Quando chega o amor à casa vizinha

  Quando entra pela porta de madeira escura, o amor, na casa vizinha, eu o escuto daqui do meu apartamento. Não importa a que horas ele chega, se vem andando ou desce de um carro parado em frente à calçada. Se vem de jeans, bermuda ou calça social e sapatos; eu sempre sou avisada da sua chegada. Mesmo que eu não me importe, mesmo que eu esteja fechada a ele, mesmo que eu queira distância ou ignorá-lo; quando o amor chega na casa vizinha ele acena para o meu sono, refeição, banho ou leitura. O amor ao lado nunca é silencioso e discreto; é agitador, é público.
  Quando o amor chega na casa ao lado, ele levanta a mulher do sofá, a cadela do colchão, a avó de cócoras no jardim, o adolescente do seu tédio adolescente.
  Quando o amor chega, ele se mostra em cor, jeito e os seus muitos sons. Ele emudece a TV, ele desliga os silêncios e escoa as mágoas de muitos meses da casa ao lado.

  Quando entra pelo portão da casa ao lado, o amor, ele decide o que será o dia da casa inteira. Acordam mais cedo os seus moradores para esperarem por ele, escovam seus sorrisos com pasta de menta, se veste de camiseta de estampa de um herói dos quadrinhos o adolescente, a avó coloca sua blusa florida e a mulher usa vestido, se sentam para tomar café e dividirem o queijo e a ansiedade pela visita.
  Se o amor anuncia a sua chegada, o adolescente fica eufórico, conversa mais e em muitos tons mais alto, a mulher é mais segura, pinta o rosto, risca de preto a linha d'água dos seus olhos que ficam ainda mais claros, a avó suspira tranquilidade e a cadela, do portão, late e pula nas grades.
  O almoço é especial, alguma comida que festeje a chegada, o amor traz refrigerante e cerveja. A sobremesa espera na geladeira desde o dia anterior: vermelha, fresca e dulcíssima.

   Quando a amor se instala por algumas horas na casa vizinha, o meu diálogo com o silêncio interior  é interrompido, a minha música, a minha paz e até a minha melancolia é agitada pelas suas ondas intranquilas.
  Se o amor passa o domingo na casa ao lado, eu preciso me acostumar aos efeitos devastadores dele sob a minha janela. Cessam os silêncios, as dores, os rancores, a passividade do primeiro dia da semana na casa ao lado, a cadela enfastiada fica agitada, os corações da casa pulsam cada qual com a sua esperança mais íntima; e eu escuto daqui as arrojadas batidas.
  Se o amor vem para o almoço de domingo, na casa ao lado, a minha fome passa a ser acompanhada por risadas, inesperados bons humores à mesa na casa vizinha. Não há tentativa de cochilo ou solidão bem sucedidas no meu apartamento se, de repente, o amor chega à casa ao lado para o lombo com calda de laranja.

   Esse amor-barulho, depois do caloroso almoço, conserta telhado, simula paternidade, consola os lamentos da quase sogra, distrai a cadela com o sumiço de uma bolinha, que nunca foi jogada de fato e beija longamente a mãe do adolescente, que não se lembra se já viu a mãe ser beijada antes. 
  O amor-promessa não reclama do sal na comida, não acha a avó intrometida, não grita com a cadela agitada, não toma as lições de geografia que o menino nunca sabe - o amor ainda não sabe o que o menino sabe ou não - não acha que a mulher envelheceu, se descuidou nem que exige demais.
  O amor, quando chega à casa ao lado, interrompe as minhas questões, poesia, meditação, angústia, descontentamento, pequenas alegrias individuais e almoço improvisado. O amor-invasão me faz querer jantar à luz de velas, vestido preto, salto, magia e Fernando Pessoa com vinho branco.

   Quando o amor faz barulho sob a minha fronha de domingo sonolento e acorda a minha vontade de também ser amor, por alguns minutos, eu o nego. Desejo compreensão para a minha solidão acostumada, respeito para a minha intimidade silenciosa e inquestionada, paz e tédio para o meu final de semana interior.
  Mas depois dos gritos, das gargalhadas, dos latidos e  da esperança instalada na casa ao lado, me sinto culpada pelo meu humor pesaroso. O amor na casa ao lado testa os meus limites de empatia e me faz também amá-lo um pouco, mesmo que sem muita confiança ainda. É um amor diferente esse, como os outros três últimos que não chegaram a abrir a porta; só sumiram pela calçada. O desse domingo, quem sabe, vinga? Quem sabe não se esparrama pelos dias dos moradores infinitamente, como as rosas que avó espalhou pelo jardim da casa? Há muitas mãos para molhar suas raízes, agora.

  O amor quando chega barulhento na casa ao lado, me acorda, me coloca de pé antes do desejado, aos domingos. Me deixa impaciente, mal humorada e inquieta, nos primeiros minutos. Mas depois, desperta a minha esperança, os meus pensamentos amorosos com o mundo e os seus habitantes; todos merecemos que o amor nos bata à porta e  transforme os nossos dias.
  Os moradores da casa ao lado fazem barulho para receberem o amor e eu não me incomodo mais; pessoas barulhentas são felizes ou, ao menos, tentam a felicidade. E tentar já é quase ser.
  Quando o amor bate à porta, na casa vizinha, eu daqui já o recebo. A felicidade também contagia, a esperança é a rosa vermelha que avó corta para colocar numa jarra transparente na mesa do almoço feito para o amor.

  Quando chega o amor à casa vizinha, beija a mulher, enche de esperanças a avó que quer muito que os moradores da casa, antes ainda da sua partida, tenham boa sorte, conforta o menino que assiste ao beijo e agita a cadela que gosta de ter mais mãos que afaguem sua cabeça de vento.
  Quando chega o amor na casa vizinha, eu não me exaspero, não entro na fila, mas também não rejeito os seus sonhos, que grite o amor onde quer que ele chegue. Prefiro o seu barulho ao silêncio da desilusão desses dias de país calado de tristíssima ignorância. O amor revoluciona qualquer vizinhança, o amor transborda da casa ao lado porque ele é feito de não caber. Que ele nunca caiba e que não acabe, enquanto puder ser.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 14 de fevereiro de 2020

Mestre Amanda machado
MSc das coisas do coração

Fiquei na dúvida entre Mestre e Mestra, já que a etimologia é a mesma, mas mestre é de uso corrente no plano de regência, segundo as fontes consultadas.

Há no texto, em todo ele, o encantamento pela Empatia, que é citada como teste de limite, como se pudéssemos limitar o gostar, testar nossa percepção do outro. Claro, você provoca esta reflexão nos leitores mais atentos. É possível?

Há um sujeito oculto no texto, que quase passa desapercebido. Três outros foram eliminados e agora temos um em evidência, cativando o público alvo. Amanda tem sutilezas requintadas. Nestes tempos difíceis, onde o Cristo está sendo disputado no voto e no dízimo, falar de Amor é uma atitude corajosa, audaciosa. Falar de amor, falar do próximo e da empatia, daqui a pouco será inconstitucional, pois não é por acaso que dentro do projeto orwelliano, o BBB está em terras guaranys há vinte anos para dessensibilizar a mente e o coração da choldra.

Apesar de tudo, amanhã há de ser outro dia."O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece. 1 Coríntios 13:4"

Gratidão por um texto tão provocador.
Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 17 de fevereiro de 2020

Caríssimo Paulo (tão talentoso para a escrita, quanto o outro o de Tarso),

está corretíssimo, mais uma vez, em sua análise sobre a dificuldade de falar/escrever sobre o amor nesses tempos. É um cenário que nos arrasta para a desesperança e esta é irmã do ódio e da indiferença (ambos venenos poderosos). Além do mais, o que é o amor? (pergunta filosófica recorrente). Ah Paulo...acho que é também isto: continuar e resistir à corrente. O amor visita às casas vizinhas todos os dias...e eu precisava contar isto.

Abraços e gratidão imensa pela sua generosidade nas leituras e contribuições que só enobrecem este canto daqui.
Amanda

Ps: MestrA sempre! rs