sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Pequeno inventário dos desperdícios cotidianos

  Não abrir uma garrafa de vinho para beber apenas uma taça; porque é tarde, porque é solidão, porque não é natal nem ano bom, nem São João ou luar no sertão. Ou porque tem provas para corrigir e teste de direção para fazer pela manhã.
  Não abrir a garrafa de vinho, esperando por um brinde que nem sabe se chega e se chegar nem sabe se saberá que é por ele que esteve esperando.
  Não abrir uma garrafa de vinho para se manter ainda sóbria neste mundo, quando desejava cambalear de descuido até encontrar o sono.

  Achar que é velha demais, nova demais ou incapaz de realizar um sonho antigo. Acreditar em quem não a vê vestida com os seus sonhos.
  Achar que não pode mais, que não cabe mais, que não arde mais; depois de aprisioná-lo por tanto tempo.
  Deixar de tentar a liberdade dos remotos sonhos de um quadro pretérito, de não deixá-los a vista, em público, indomesticáveis, só porque determinou a sua data de validade. 

   Acreditar que no tempo certo algumas deficiências serão superadas, os vazios serão ocupados, as palavras esperadas virão da boca em silêncio ou que só contradiz as palavras aguardadas. O tempo é este. Talvez nunca virão, nunca se completarão, não se recuperarão. O tempo é só um lugar em que as horas, os dias, os anos moram; o tempo não é a ação. Às vezes ele pode muito menos do que gostaríamos.
  O tempo não é remédio, o tempo é só uma prescrição para o remédio fazer efeito. O tempo sozinho não alivia nada.

  Atribuir à luta o que não é de luta; nem tudo é suor, sangue ou lágrimas. Às vezes a luta subtrai o prazer do encontro, da realização, da ressignificação dos sentimentos. Às vezes a luta oculta a vitória e não sabemos mais quando, por quem ou pelo quê pararmos.
  Às vezes o combate cega, endurece a alma, enrijece o coração; e um guerreiro muito sólido não reconhece o fim da batalha. De tanto evitar o medo nunca mais mergulha nas próprias profundezas. Lutar traumatiza, lutar perturba, lutar rouba-nos o prazer de deixar ser o que pode ser e deixar ir o que não é de ficar. 

  Achar que as pessoas mudam só porque prometem mudança. Ou porque concedemos a segunda, terceira, quarta chances. Elas não mudam, se não for o tempo da mudança. Elas não mudam só porque querem corresponder à promessa, elas não mudam só por quererem que acreditemos nelas; elas não mudam só porque dizem que mudaram.
  A verdade é que estamos sempre mudando, por vontade, mas muito mais por ventura. Estamos condenados às mudanças e permanências involuntárias, mas também somos contemplados com a arbitrariedade daquilo que chamamos de destino.

  Não falar, não demonstrar, não admitir um sentimento por receio de não ser correspondido. Não enviar uma carta é certeza de não ter resposta, mas enviá-la possibilita uma retribuição do destinatário. Se ele vai escrever ou não o carteiro ainda não sabe, mas pode ser que uma carta amorosa repouse na sua caixa de correios algum dia.
  Não falar, não demonstrar, não admitir uma dor por receio de parecer vulnerável. Não saber que a vulnerabilidade aproxima e pode mesmo curar uma indiferença. A vulnerabilidade não é fraqueza, é coragem de não ter que parecer sempre resolvida.

  Não entrar na água para manter o cabelo alinhado. Das coisas mais prazerosas da vida é a beleza da desarrumação. Felicidade desequilibra, contentamento bagunça, alegria é muito mais desgrenhar-se do que se manter alinhada.
   Pagar a escola de inglês para o filho, mas nunca ouvir sobre como ele se sente quando está só; viajar para a Europa, Ásia, Oceania, mas evitar alguns lugares em si mesma; atravessar o oceano, mas nunca chegar verdadeiramente ao outro; evitar o encontro. Ler muitos livros e não chorar com ao menos um deles. Escrever livros e nunca se dedicar aos muitos bilhetes para o companheiro de uma vida. Chegar no horário para reunião, mas se atrasar para o único momento que jamais se repetirá na sua história.
   Priorizar a novidade, mas negligenciar os vínculos; vingar-se quando perdoar absolveria duas almas de uma só vez; não dar o primeiro passo e querer que a tirem para a dança.
  Não abrir a garrafa de vinho, não ver o céu estrelado, não ir deitar meio trôpega de álcool e alegria por saber brindar sem esperar o especial motivo.
   Dos desperdícios cotidianos, os cafés que não tomamos, os abraços que nunca damos, as declarações, os convites, os caminhos que não fazemos, as histórias que não escrevemos, as danças que não começamos, os vinhos, as cartas, os descansos, as vozes interiores e daqueles que amamos estão sempre à espera de saírem do malfadado inventário cotidiano.



4 comentários:

Sofia de Buteco disse...

Eu poderia passar o resto dos meus dias, todos os dias, lendo os seus textos. Me vejo em todos eles. De alguma maneira e Amo Natalia Lafoucarde.....🍷💔 Eu já não compro o vinho....rs.

Amanda Machado disse...

Ah...que linda! Me sinto muito honrada por se ver aqui; é um privilégio. Também adoro ela...

Kellen disse...

Meu café da manhã é outro qdo vc me faz companhia!coisa mais linda 💓

Amanda Machado disse...

Que delícia partilhar do seu café da manhã...linda é você!