quarta-feira, 25 de março de 2020

Hoje não tem poesia

    Não.
   Hoje tem nó atravessado na garganta, grito preso de desolação e raiva. Hoje não tem versos cadenciados, não tem estrofes que alcancem uma alma sedenta de rios sonoros. Hoje tem sede.
  Hoje não tem as palavras desenhadas com pena e ponta fina, caligrafia delicada, generosidade de sentidos nem linhas vistosas ou minimalistas que atravessem um coração solitário. Hoje tem rasteira, queda e poeira na boca.
  Hoje não tem prateleiras preciosas, vastidão de humanidades, páginas que acolham as dúvidas, os medos ou as nossas sandices necessárias de cada dia. Hoje tem silêncio e solidão.
   Hoje não tem a boa companhia das muitas autoras e dos seus livros capazes de cobrir os buracos em qualquer peito. Hoje tem só os buracos, feridas expostas às moscas varejeiras. Hoje tem odor putrefato.

  Hoje não tem salmos, livros sagrados, poemas-profecias. Hoje não tem perdão. Ouviu? Não tem. Hoje tem acusação. Não! Hoje tem constatação. Tem, de novo, o eu avisei, eu disse que ele não, eu falei que era fascismo.
  Hoje tem o curso irreversível da história, de novo, de novo e de novo. Hoje é mais um dia para questionar. Hoje tem ciência, tem pesquisa, tem orgulho de não chamar de mito, de enviado, de honesto.
  Hoje não tem hinos, pastores e padres, corpo e sangue, passe ou oração. Hoje ninguém se salva e o cordeiro não é Dele não. Hoje não tem milagre, não tem conversão, não tem incorporação. Nem vinho, nem chá de ayahuasca, não tem água benta, consagrada ou fluidificada. Hoje tem cólera.

  Hoje não tem ioga e meditação. Hoje tem completo descontrole, desvario, sangue quente e nenhuma polidez. Hoje tem grito na janela -  se o grito conseguir sair - barulho de panela, fora da cozinha - fora ele -  e tem muito mais soluço do que solução. Hoje tem briga desenterrada, tem estômago frágil, tem ânsia de não ouvir mais nada.
  Hoje não tem filosofia celta nem zen budista; não tem exemplos com países nórdicos nem orientais. Não tem terapias chinesas com agulhas, chás indianos com cardamomo; não tem mantras Hare Krishnas e conexão metafísica com o universo.
  Hoje não tem prato quente. Tem falta de apetite, de vontade, ausência de mãos femininas decorando mesa posta para o jantar do homem de bem. Hoje tem discussão, tem rebelar os ânimos, falar sim palavrão. Hoje tem indignação.

  Hoje não tem música, não tem artes cênicas e plásticas, não tem o core em expansão nem estímulos à glândula timo. Hoje tem deserto e insolação; tem hospitais entupidos, tem ameaça às vidas amadas; toda vida é amada por alguém.
  Hoje tem alguém que vela alguém, alguém que reza por alguém, alguém que aguarda a sua vez na fila, alguém que espera alguém que não vai voltar. Hoje tem alguém que não vai se despedir a tempo, hoje tem alguém que não tem mais tempo. Hoje é sopro; sonho não vivido e amor nunca declarado.
  Hoje não tem explicação para hoje. Hoje tem uma sensação absurda de que o absurdo é que é o normal. Hoje tem o mal-estar da barbárie.

  Hoje não tem romance, não tem pergunta sobre se ele me ama ou mente ou se mente e também me ama; hoje não tem enquete de reality show, se mocinha e vilã; bem e mal. Hoje não tem celebridade e subcelebridade, tem pessoas e subpessoas.
  Hoje não tem filme e pipoca, ligação para o amado e as amantes, sonhos voluptuosos e úmidos  na madrugada. Hoje não tem desejo, não tem liberdade sexual, não tem fantasias, não tem voz rouca ao gravador e partes secretas do corpo na tela.
  Hoje tem pronunciamento criminoso, bestial e infame. Hoje tem raiva de termos chegado à hoje; hoje tem arrependimento de não sermos outro hoje. Hoje tem a culpa de não protegermos o nosso hoje. 

  Hoje não tem poesia, porque nem as metáforas suportam a ignorância e a malignidade dos discursos. Hoje tem respiração ofegante, lágrimas que não podem ser contidas e a impotência da desesperança. 
  Hoje não tem sete partes de texto. Não tem doçura para os leitores, não tem autoria nenhuma. Hoje tem dedos furiosos que nunca fizeram arminha, que só sabem pulsar, sangrar e resistir. Hoje não tem poesia. Amanhã pode ser que tenha. Amanhã pode ser um sentimento muito diferente do que é o hoje.

2 comentários:

katia cilene da costa disse...

Amanda.estou orgulhosa da mulher escritora que estas te tornando.Nunca desista de falar sua palavra.Voce nos inspira.
Grande beijo.

Amanda Machado disse...

Katia...Que querida!!! Grata pela sua generosidade e gentileza. É muito bom ser admirada por quem tanto admiramos. A palavra é um guia quando sabemos que ela ecoa até outras existências. Muito obrigada mesmo!