quarta-feira, 1 de abril de 2020

O homem que planta futuros e poesias

   Elas crescem em um retângulo de pouco mais de sete metros quadrados, dividem espaço com uma palmeira pequena e outra planta ornamental, muito comum nos jardins dos prédios da cidade, cujo nome eu não sei. Elas só brotaram depois de meses de insistência, adubo, vitaminas e mãos que nunca antes foram dadas à delicadeza - agora são. Eu assisti ao empenho de alguém que nunca me pareceu se importar com flores e partilhei do desejo de que elas finalmente brotassem e crescessem com a máxima beleza que pudessem.

  Brotaram depois de desperdiçadas muitas mudas, alcançaram lentamente à vida depois de de muitas pequenas flores, ainda fechadas, caírem secas no gramado. Foi um caminho longo e tantas vezes frustrante para quem só queria ver nascer rosas em um pequeno jardim de um prédio cinza, antes acostumado com plantas mais resistentes, que só exigiam água - que podia vir das chuvas ou da mangueira de borracha da senhora que faz a limpeza - e poda de algum jardineiro que eventualmente cuidava do gramado.

   Brotaram amarelas e vermelhas; as primeiras só duraram uma temporada, as outras já se abriram para uma quarta ou quinta existência. Brotaram pequenas e ainda desencontradas da estética geral do ambiente. Brotaram teimosas, trazidas à vida por mãos desacostumadas, mas norteadas por um sonho intenso. Brotaram porque alguém quis muito que elas existissem.
 Gosto de passar por elas todas as manhãs antes da corrida, de sentir o cheiro delas enquanto me alongo na grade do prédio e me sentir  imensamente orgulhosa quando percebo os esforços - alguns bem sucedidos - de levarem para casa uma ou duas das rosas desse desimportante jardim. Gosto de pensar em quem as receberá, os motivos para a infração e o sorriso depois do regalo. Mas gosto, sobretudo, de perceber em cada rosa o esforço significativo pela vida.

  Meu pai planta rosas.
  Em mais de três décadas de convivência, o homem sensível às leituras, aos filmes do Charles Bronson, às orações e ritos das missas de domingo, as histórias de superação exploradas pelos programas de TV, às curiosidades das infâncias que o cercam, às pequenas conquistas de cada filho, aos nascimentos das netas, às noites de sono que a sua mulher perdia para o trabalho, às saudades de uma mãe que pouco teve ou não soube como ter, agora planta rosas.
  Por um pedido meu, por um desejo da minha mãe ou por um desafio novo autoimposto, meu pai decidiu cultivar rosas no jardim do prédio.

  No início, o solo não ajudava, as mudas não aderiam à acidez de uma terra urbana, cinza e misturada às sobras da construção do prédio. Seu primeiro desafio foi abrir espaço limpo, novo e fresco para as vidas que ele desejava ver nascer.
 Corrigido o solo, as folhas das primeiras mudas foram devoradas por pragas que eram desconhecidas por quem nunca antes havia plantado qualquer coisa que não fosse feijão ou milho. Precisou encontrar inseticidas leves, que dizimasse as pragas, mas não enfraquecesse as rosas e o restante da vegetação já tão bem instalada. Fez cálculos, diluiu compostos na água, cuidou de molhar cada caule - como um curandeiro faria com partes de alguma pessoa adoecida - com delicadeza e afeição; visitou diariamente as pequenas vidas em convalescência e comemorou cada nova folha verde que resistia.

  Assisti-lo cuidadoso, cheio de dignidade e respeito com uma espécie que há pouco não parecia despertar sua emoção, me fez amá-lo mais, sem nem saber que o que eu amava não era tudo o que eu podia. Amar é algo que sempre se pode mais, assim como aprender a amar outra vida é sempre perto e muito, muito simples.
  Desejar ver nascer, cuidar, empreender esforços para o que é novo se acostumar, ganhar robustez, altura e colorido e, principalmente, não desistir nas sucessivas frustrações possíveis. Cada rosa que se abre é um sonho de não desistência e dedicação com a qual me pai me presenteia e nem sabe, mesmo que eu não traga quase nunca nenhuma delas para casa. 

  Nos últimos dias, eu só tenho podido vê-las da janela do apartamento. Estão ainda mais vermelhas e vistosas; são ainda mais resistentes e escandalosas, embora sejam filhas de mães muito discretas e silenciosas. Meu pai plantou um exército de belos poemas que colore e enfeita a visão dos que desolados pelo silêncio, pela interrupção das suas rotinas, planos e sonhos que não têm previsão de quando, como e onde, aparecem em suas janelas. Meu pai, sem saber, espalhou esperança e beleza por bem mais do que sete metros quadrados.
  Meu pai me ensina, de novo, a não desistir de futuros e a ter paixão pelo agora. Um homem que ensina a plantar sonhos, mesmo que ainda tenha muita dificuldade em limpar os sapatos na entrada e fechar as portas na saída. Um homem que me ensina a amar mais, a querer gerar poemas e fazer brotar esperanças em solos já desenganados. 



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 01 de abril deste inenarrável 2020

Prezada Amanda
moça da quintessência das letras

Já vou logo avisando, estou com tempo. Estou com tempo de refletir sobre como chegamos neste caos organizado, como acolhemos bem o cárcere privado, como ficamos fragilizados, enfim, estou com tempo.

Que lindo o texto - um homem que planta rosas no meio do caos, que na mitologia refere-se ao espaço limitado e amorfo que precedeu à criação do cosmo. No princípio Deus criou o céu e a terra, mas não há princípio, há um continuum, então, o caos antecede ao princípio desta natureza tridimensional.

Um homem que planta rosas no meio do caos é um ser divino, há nele o amor sublime. É a imagem e a semelhança do Criador em alto grau de similitude. E aqui você o colocou como o pai - vou replicar um pensamento de Freud, sem aprofundá-lo - "O Deus pessoal não passa de um pai transfigurado".

Quem cresçam as rosas,livres, sem medo de chuva, fungos, virus e mãos pesadas.

Um abraço!!

Amanda Machado disse...

Minas Gerais,primeiro dia de abril de 2020

Prezado Paulo,
que virada dramática a nossa narrativa sofreu, não? Dizer que não imaginávamos essa possibilidade não é nem um pouco compreensível.

Algo nos aconteceria, alguma imprevisibilidade havia de sacudir o mundo que conhecíamos.

Sim. É caos, é pedrada, é o fim de um caminho...mas o homem planta rosas, aprende e ensina a continuar. A vida também tem imprevisibilidades bonitas e ternas.

Grata por vir aqui, mesmo em tempos de urgências lá fora e cá dentro (sempre!)
Abraços,
Amanda