sexta-feira, 20 de março de 2020

Para que não suba a curva, para que a minha mão ainda alcance a sua

  Você está do outro lado do hemisfério, do oceano, do país, da cidade, do bairro, da rua, da minha geografia limitada e insegura. Você está em frente ao espelho, à janela, à tela da TV ou do celular, você e eu estamos sós; como o mundo inteiro no final da tarde de um domingo comum. Estamos à deriva e não sabemos quem virá nos socorrer ou se mesmo alguém virá. Não tem um remo nas mãos, eu não tenho um colete salva-vidas, não sabemos  se alguém enxergará nossos sinalizadores. Estamos em mar aberto e tememos continuar flutuantes, mas também descer e nadar até não se sabe onde.    
  Se existe ilha, continente ou só vastidão de água por todos os lados, como saber? Você e eu, como o mundo inteiro não sobreviveremos de argumentos, certezas, experiências anteriores; nunca fomos isto antes, entende? É mesmo uma paisagem sem precedentes.

  Você está do outro lado da minha ideologia, dos meus santos e deusas, da minha cultura, da minha garrafa de café, com formiga nas bordas e do meu prato com torradas. Eu estou do outro lado do seu medo, da sua racionalidade que não cabe agora, de todos os livros que você leu, das aulas que assistiu, dos artigos, ensaios e teses nos quais você depositou sábados ensolarados lá fora, apresentação e futebol da sua filha, atenção com a memória perdida do seu pai, dedicação com a alegria desencontrada da sua companheira.
  Você não é o centro do mundo, descobrimos que ninguém é. Você é periferia, ralé, é uma gota em um oceano de infinita magnitude. Eu sou mais uma curva entre tantas, entretanto você é único para mim e eu tão imensa sob o seu olhar. Que olhar temos agora, senão o da memória? Nem ela é para sempre.

  Estamos em um deserto recém-descoberto sem meios de sabermos quando é o fim. Aqui o sol esquenta e esfria todos os dias; esta é a única certeza da qual partilhamos. Um metro, milhões de quilômetros de distância, anos luz a minha mão da sua, a sua cabeça do meu colo, o meu pé da sua barriga, as nossas mãos por debaixo da mesa. Uma volta e meia na Terra- redonda, da qual mais gosto; um século, três milênios e duas horas a minha boca para reconhecer a sua.
  Você está exausto não pela caminhada, mas pelo que imagina ter que andar; eu estou desesperançosa dos meus pés encontrarem um solo que não seja esse árido em que pisamos agora. A realidade é uma obra distópica, sem romances, sem heróis, sem capítulos finais contado em uma mesa de bar. Aqui não tem spoiler.

  Eu estou do outro lado das suas pequenas mentiras e não o odeio por elas, tampouco o conteúdo delas; eu só queria ser confiável o suficiente para partilhar das suas verdades, duras, ressequidas, cinzas, sem máscaras. Eu estou do outro lado de mim mesma, do que prometi, sonhei, do que tentei construir em museus e consultórios dentários.
  Você está do outro lado da minha projeção, com as humanidades que eu rejeito, com as animalidades que eu tentei civilizar; quem sou eu para dizer o que é barbárie?  Você está do outro lado da minha sanidade; você chora, se desespera e eu só quero continuar sem dor. 
  Estamos insones, insanos, insossos. Eu durmo e não descanso, você se medica e não se cura; ambos incluímos mais atrativos sintéticos, que não seduzem ninguém.

  Eu estou do outro lado da sua sede e não me liquefaço; você não me toma em uma taça de cristal, de um conjunto parcelado em seis vezes. Um copo de requeijão reutilizado e a taça dos reis tem a mesma serventia agora. Nada para matar a sua sede hoje. Logo vai se acostumar a ter sede e não ter com o que se livrar dela.
  Você está do outro lado do meu ego, com os poemas que escreveu para outras, as promessas que jurou noutras noites de luar para outros ouvidos, os sonhos e os nomes dos filhos futuros partilhados em outras camas pela manhã.
  Estamos do outro lado dos nossos planos, poupanças, financiamentos aprovados de apartamento ou primeiro carro. Eu não quero mais Veneza. Eu quero praça, eu quero paz. Quero um cachorro caramelo de raça indefinida que me espere quando eu chegar do trabalho e você com o que sonha, enquanto não encontra a minha mão na sua?

Você está rezando de novo, eu estou ouvindo crente e atenta os hinos religiosos da minha vizinha protestante. Estamos em casa e não fazemos barulho. O silêncio respeitoso pelo que ainda virá.
  Eu estou correndo sozinha todas as manhãs pelas ruas vazias, você está bebendo suas cervejas durante as tardes dos dias de semana. Eu não leio, não assisto a filmes, não me apaixono tanto quanto eu gostaria; você não assiste mais ao futebol pela TV.
  Eu estou do outro lado das suas sessões de análise e massagens modeladoras; você está do outro lado do meu interesse por ações na bolsa e astrologia. Estamos do outro lado da preocupação com o que tem depois da linha, do vidro, da porta do carro, do portão do nosso condomínio.

  Não nos tocamos mais nem fazemos planos a curto prazo de isso acontecer, não olhamos nos olhos um do outro, não enxergamos as singularidades das nossas íris sob os raios de sol que entram pela minha varanda depois das quatro. Não tomamos sorvete, café, dois chopes, água com gás ou gim. Não vamos ao cinema ou teatro; não andamos pelas ruas da cidade, sonhando com algo que nunca teremos, porque não vamos mais querer ou porque nunca nos será acessível.
  Eu estou do outro lado da sua angústia, compartilhando shows online, receitas de bolo, fotos de gatos e de bebês sorrindo. Você está do outro lado do meu medo, mandando notícias otimistas e pedidos de oração, meditação, saudação ao universo, simpatias e bruxarias para que o nosso destino seja um porto firme.
  Nós estamos na mesma embarcação, mas eu não o vejo nem você a mim. Estamos isolados dos sentidos um do outro, mas partilhando tanto dessa viagem assustadora e necessária. Devastadora e potencialmente evitável. Não vou ver você e nem você virá até mim. Para que a curva não suba, para que a Terra volte a ser um lar de todos, como foi para os nossos ancestrais, precisamos lavar as mãos e sonhar com o outro mundo possível.
  Eu cansei de me sentir sozinha. Quando a boa onda me levar para um lugar do oceano onde eu possa ver algum trecho de continente, eu vou fazer mais café, atrair formigas para a borda da garrafa e com a planta dos pés tocar os pelos do meu cão caramelo sonhado.





Um comentário:

Amanda Machado disse...

Gracias pela generosidade da leitura!