
- Não me lembro do enredo, mas modificou a minha vida.
Esse livro vai atravessá-la hoje e a lança perfurará longamente o seu peito. Alguma dor, nenhuma ferida aparente nem necessidade de suturas. Esse livro e esse alguém serão um só; e começou hoje essa jornada tão bonita e imprevisível.
Nesse dia de abril de uma quinta-feira morta outra existência começa e ninguém mais testemunha, só páginas e leitora desavisada. Papel e moça. Pele e musa.
Nesse dia perdido de nuvens cinzentas e tédio uma menina aprende a andar de bicicleta no quintal de casa. O pai empurra e segura, incentiva coragem e ensina precaução; o homem-pai escolhe um chão menos instável e de cimento mais liso para absorver as quedas e minimizar os traumas da menina-filha. O mesmo homem por quem ela se sentirá abandonada, preterida, esquecida, depois que ele for embora e construir outra família. Outras meninas-filhas ao redor dele no natal e ela órfã com o sobrenome que não assinará por anos.
Mas esse dia, o da aprendizagem da bicicleta, será ainda recordado sessenta anos depois por uma filha tão boa ciclista quanto curadora das próprias memórias.
Nesse dia de normalidade aparente um laço de paternidade e afeto é construído; uma lembrança será para sempre guardada pela escafandrista de joelhos feridos do quintal. Um herói decairá. Um perdão também começa hoje.
Nessa quinta-feira de abril lento e absolutamente incógnito uma conversa banal acontece pela primeira vez entre dois desconhecidos distantes. Uma consultoria, um orçamento, uma viagem cancelada e entre os minutos de espera de uma nova senha, do reinício da máquina, da atualização do sistema duas vidas se escutam, sorriem, desejam mais tempo, mais trocas, mais-mais.
Hoje um amor começa, sem suspeitar que é amor, sem desejar ser amor, sem mentir para ser amor. Numa duração de tempo indeterminada; dois meses, um ano, cinquenta e cinco.
Mais um amor começou hoje. Com guerra fria de abril, noticiário indigesto no telejornal, comandante afundando navios em série e amantes, que ainda não sabem que são, começam uma dança que ocupa o salão por bem mais que uma só música.
Nesse dia obscuro e silencioso de abril com portas fechadas uma mulher, depois de se deitar, não se lembrará mais da sua idade. Os anos voltarão só para ela; solitária em outro tempo, prisioneira de lembranças muito amarelecidas. Os filhos, os netos, os alunos, as casas, as descobertas, os livros, os idiomas, as criações, os filmes, os maridos serão inéditos e desconhecidos. Hoje, dois filhos falam com a lucidez de sua mãe pela última vez. Ela dá conselhos, pergunta sobre os netos, faz planos para depois do isolamento: reformar a casa, aprender a baixar filmes no celular, viajar para a Grécia, voltar a dançar, abraçar muito os netos e se casar,quem sabe.
Hoje uma mulher apagará muitos tempos e acordará confusa e preocupada com os pais e os irmãos que não estão mais. Nesse dia de abril mergulhado em insegurança uma família não sabe que aprenderá a amar uma estranha e sentirá saudades de alguém que não partiu.
Nesse abril atípico de solidão preventiva, uma porta é fechada com um som seco de derrota. Um coração é desmantelado de tristeza e convicção; outro é fragmentado de aflição e dúvida. É o fim da trama. Dois tempos diversos; um final partilhado. Alguém decide o que outro ainda nega. Alguém precisa escrever a última página, porque já não conseguem dividir a autoria.
É a despedida de uma vida em comum; é o início de uma memória compartilhada. Alguém se sente liberto, outro alguém se vê abandonado. Ambos ficarão enlutados, despedirão de um mesmo finado, mas sem dividirem o velório. Acabou de acabar. É triste, é frustrante, é a história possível.
Nesse dia de abril, quase fim, um outro final precisou ser gerado. Duas pessoas crescem muito, duas dores sufocam e dois travesseiros estão molhados de saudade e alívio; hoje teve fim. Amanhã pode ser recomeço ou só saudade ainda.
Nesse dia perdido de abril despedaçado alguém descobre a própria voz e nunca mais se calará. Nem por medo, nem por vaidade, nem para ser amada. Alguém descobre que a própria voz é, finalmente, a sua força. Não sabe que a sua voz é essa, ainda testará variações, desconfiará das suas entonações. Mas ao silêncio não sucumbirá mais. Terá dias de menos palavras, mais calados, mas nunca mais completamente mudos.
Nesse dia aparentemente ordinário, alguém encontrou o seu destino, sem saber que é destino e encontro; saberá muitos anos depois. Uma voz, a sua, contará do dia que foi o dia do encontro entre dona e voz.
Nesse dia de abril, que parece perdido, a vida aparece sem dizer que se chama vida. Entra sem bater na porta, sem dizer bom dia moça, passa um café, coloca os pães na mesa da cozinha, recolhe o lixo, lava os pratos, escova os dentes, escreve um relatório que alguém só vai ler os primeiros e os últimos parágrafos, borda uma ave azul numa toalha, cozinha abobrinha e pimentão, lava o fogão e coloca o pano de pia para secar, termina outro relatório, faz massagem com óleo de coco nos cabelos, raspa as pernas com o barbeador já muito usado, chama o cão para ver a lua, se lembra de alguém que nunca mais viu, sente a ausência de alguém que ainda não chegou e ninguém pensa, de fato, que isto é parte de uma vida inteira, acontecendo em um abril desperdiçado.
Nesse dia morno de desacontecimentos no quarto mês do ano os encontros que definem histórias acontecem entre as paredes dos prédios da cidade: a pessoa e o livro, a memória e o perdão, os amantes futuros, o tempo e o deserto, os amantes passados, a voz de si.
Nesse dia, aparentemente desperdiçado, a vida se apresenta sem um nome e se junta a outros fragmentos de um abril passado e outro e outro. Nunca um abril é perdido; nunca um dia é realmente desperdiçado.
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