quarta-feira, 22 de abril de 2020

Repousa um céu em você que eu não sei se alcanço

  Você tem curvas demais nos seus planos,  por isso é tão difícil acompanhar a sua jornada. São manobras que requisitam uma sofisticação que eu não tenho. É arriscado seguir você; é doloroso não tentar seguir.
  Seu itinerário é muito vasto para minha bússola que só encontra duas direções possíveis; nunca mais. Suas inclinações imprevisíveis embaralham meus passos, modificam os meus sentidos até eu não saber mais onde encontrá-la. Você é fluida demais para ser tomada, grande demais para ser escondida e perecível demais para não ser partilhada.
  Seu chão é sempre instável para mim, não sei afundo mais a cada passo, se estou quase do outro lado ou se só permaneço. Eu não sei onde encontro a sua outra borda, depois de soltar a única que eu conhecia. Por isso, permanecer sem tê-la completa é uma escolha para não perder tudo.

  Seu mapa astral é indefinido. A minha desinformação sobre o seu horário certo de nascimento me afasta do seu signo ascendente; é escorpião ou câncer? Peixes ou capricórnio? Touro ou libra? Áries ou leão? A hora exata da sua chegada a este mundo me ajudaria a saber mais sobre você.
  Uns dizem que você é simples, chega a qualquer hora, toma café em copo americano, se senta na banqueta descascada da varanda e ouve histórias com brilho nos olhos. Outros falam da sua complexidade, da casa arrumada que você exige, dos filhos de banho tomado e da comida servida à francesa no jantar.
  Alguns falam que você está sempre por perto e é muito disponível, basta um aceno, um bilhete ou um recado na rádio comunitária do bairro e você aponta na janela. Outros falam que é difícil agendar uma reunião com você, que está sempre ocupada, com pressa e às vezes desmarca, adia ou só não comparece. Quem é você, afinal? 

  Suas chegadas são sempre cercadas de sentimentos e sentidos tão diversos, que às vezes nem o anfitrião sabe precisar o seu lugar à mesa. Ele gagueja, enrubesce a face, sinaliza a algum íntimo que o venha ajudar a recebê-la, porque sozinho não suporta a carga. Você é convidada de honra intensamente aguardada e cotidianamente desacreditada.
 Suas partidas são sempre sabidas, embora não agendadas, não avisadas com antecedência; às vezes, são pressentidas. Mas quando confirmadas, arrebentam almas. Quando vai embora, quase sempre leva também, involuntariamente, uma dezena de sonhos, esperanças e boas novas.
  O tempo da sua estadia é incerto, assim como é desconhecido o espaço que ocupa numa cama, na mesa, na banheira de espumas, na área de serviço, lavando roupas. Não importa, se quiser tomar toda  a casa, faço escritura com seu nome imediatamente.

  Suas leituras não facilitam os meus diálogos com você.Você não é pragmática mas também não é sonhadora; mas visita pragmáticos e sonhadores.
  Você é a linha de poesia na prosa; é a descoberta científica no laboratório de análises clínicas; é o chifre que derruba o toureiro. Você é imprevisível e categórica; é inquestionável, embora tenha cabelos de incerteza.
  Sua política atende aos flagelados e banqueiros; não faz justiça social, não defende reparação histórica. Embora não levante bandeiras, não é uma alienada. Sobe morros e coberturas; do Leme ao Pontal; de Jequitinhonha à Juiz de Fora; da Colômbia à Dinamarca. Seu passaporte tem páginas infinitas. Sua biografia é carimbada por todas as embaixadas; embora não precise de nenhuma delas para visitar qualquer cidadão de qualquer país no mundo. 

   O seu cão é treinado a latir para estranhos, anunciar a chegada das visitas e a ultrapassar a porta da cozinha, quando o cheiro da comida é irresistível; e sempre ganha alimento e afago.
  Os seus animais domésticos sobem no sofá, na cama, sabem mais da casa do que os seus donos. Que moram na varanda, enquanto o gato tem quarto, sala, banheiro, cozinha e um escritório, onde passa horas trabalhando em um Romance.
  Transita entre o doméstico e o selvagem; vive muito bem na casa até ouvir o chamado da liberdade. Você não mora quando achamos que pertence. Você vagueia certa por becos e aeroportos; você não serve a domador algum. Você é quem mira os arcos e atira as flechas.

  A sua música eu não entendo, embora eu a reconheça em qualquer lugar e a muitos quilômetros de distância. As suas cifras correspondem aos meus gestos; os seus compassos são meus pulmões e coração em um mesmo ritmo e as minhas emoções embrulham as suas notas. Embora eu não saiba cantá-la sozinha, eu sempre posso acompanhar a letra. Muitas vozes a tomam e perdem-na.
   Todos somos bailarinos se você toca; todos avançamos aos salões desde o seu primeiro dedilhar. As festas só são boas se você está. Os amores só serão memória se você embala os amantes. As vitórias só são importantes se você vem até ao ringue e cumprimenta o lutador.

  Repousa um céu em você que eu não sei se alcanço, mas também não desisto de tentar tocar uma vez, uma só vez ou mais uma vez. Mesmo que eu saiba que não será lá o meu lugar de redenção.
 Mora em você a busca universal e de cada um; a esperança diária e os pedidos desde a infância que sopra velas em bolos coloridos. Perseguem-na jovens casais, mulheres que dão amor, cuidados e à luz para vê-la um instante, homens se sacrificam por seus carros e filhos meninos, com chuteiras compradas a prazo; só para beijarem-na uma vez.
  Dorme contigo os meus sonhos mais remotos e, também, os recentes; o meu egoísmo de querê-la sempre e a minha generosidade de querê-la a todas; os meus dias cinzentos à espera do rubro, os meus dias de descanso em busca de luta.
  Descansa, silenciosa e fugidia, a felicidade com pijama emprestado e beijo suave de boa noite. 


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