quarta-feira, 29 de abril de 2020

O que fazer se uma porta não se abre mais?

  Se o telefone não toca, se o abraço não pode, se os planos não chegam, se os sonhos mudam, se a
janela é a única paisagem? E se os domingos permanecem, se os almoços de domingo não são mais?   Se o amor não é mais presença física e se nenhuma presença é mais física? Se o trabalho é indefinido, se as buscas são canceladas, mesmo sem nenhum encontro notificado?
  Se não dançamos mais na chuva, se não tomamos mais chuva, se não consultamos mais a previsão do tempo? E se qualquer dia é prolongada estiagem?
E se você não passa mais pela minha rua? Se você se mudou e eu ainda não sei? Se o seu cabelo vermelho não fizer meu coração disparar de novo? E se você, mais uma vez, desaparecer nessa cidade? O que fazer se não sei nada além do seu primeiro nome, seu cabelo e barba vermelhos e a voz que nunca dividi com ninguém? E se eu nunca mais ouvir você chamar pelo meu nome?

   Depois dessa sucessão de domingos intermináveis, que puxamos de um rolo, aleatoriamente, sem sabermos quando chegará o fim; teremos, de novo, os outros dias da semana. Não sei se ainda fará sentido pedir o café com leite da padaria, na esquina do trabalho às quatro horas em ponto, de segunda à sexta. Não sei se o sabor do pão na chapa parecerá tão bom quanto era, não sei se ainda me apetecerá o que já conheço. E se me interessarei pelos desconhecimentos antigos.
  O que fazer com os sonhos que se multiplicam a cada sono? A quem devo contar os meus medos, a angústia de saber que há futuro, mas ninguém sabe quando começa? E se já for agora o futuro. Se o futuro for domingo, que futuro é esse? E se eu nunca mais ver o seu cabelo vermelho? Já suportei uma vez, serei capaz de seguir de novo pelas outras segundas-feiras sem o seu cabelo?

  O que fazer se essa distância nunca mais puder ser superada? Se descobrimos que essa distância somos nós agora? E se um descobrir isso antes do outro, quem descobrir ousará contar? E se os seus olhos abandonarem o desejo pelos meus? E se as suas mãos, que aprenderam a fazer pão no último semestre, não souberem mais onde encontrar as minhas, a quem devemos recorrer? O professor do curso de padeiro poderá nos ajudar com isso?
  E se o espaço que abrimos agora nunca mais puder ser ocupado? Ou se preferirmos colocar uma poltrona nova onde, por doze meses, mantivemos um altar? E se não invocarmos mais aquele amor? Se os hinos, se os ritos, se as confissões, se os sacramentos, as culpas, as remissões dos pecados se tornarem mais seculares do que sagrados? E se não conhecermos mais o deus-amor? E os seus cabelos vermelhos, deixarei de rezar por eles como? Oferecerei em sacrifício a qual divindade; se as nossas crenças desmoronarem?

  O que fazer se o caminho que eu abria há meses passados não estiver mais lá? Se não existem placas, nomes, mapas, testemunhas, câmeras de segurança, luzes de emergência, começarei tudo de um lugar novo? E se as etapas, as exigências, as normas forem outras, eu saberei me adequar? Eu desejarei me adequar?
  E se os meus sapatos não reconhecerem esse chão, poderão meus pés ensiná-los? E se correr para você não for mais possível, vou aprender outro itinerário? Vou. Mas quando?
  Se eu gastar tempo demais, solados demais, esperas demais, batimentos cardíacos demais, suspiros demais, ainda terei o que oferecer num encontro? Se o seu cabelo vermelho não brilhar mais sob a minha janela, eu ainda me lembrarei dele? E por quantas vidas?

  E se nesse tempo, de domingos infindáveis, os monstros ganharem mais tempo, mais lutas por W.O? Se os inimigos se alimentarem do nosso medo, teremos quem nos salve? Seremos nossa salvação ou derrocada? Se os mesquinhos, se os covardes, se os detratores dos livros, das músicas, das artes plásticas, cênicas, circenses  subirem mais degraus, poderão nos roubar tudo, até quando?
  Se a nossa sorte só for experimentada nos jogos de azar, se nos submetermos ao que pensam sobre sucesso e prosperidade e só acumularmos bens, saberemos ser miseráveis a esse ponto? Ou seremos capazes de virar o jogo? Ou, ainda, de levantarmos da mesa sem nada, sem apostas, sem prêmios, sem culpas? E se sua cor rubra não me acompanhar mais nas jogatinas, quem perderá mais fichas?

  E se os discos que eu ouvia não tocarem mais? Se as músicas forem outras, se as vozes emudecerem no meu apartamento, se as poesias não me comoverem como agora? E se eu não tiver mais lágrimas depois desses domingos sucessivos? Quem eu serei na primeira segunda-feira, mais forte ou mais fria? Mais amiga e menos poeta ou mais amante e menos comparsa?
  Se eu não souber mais construir castelos, enfrentar dragões, atravessar florestas, enganar lobos, tocar harpas, discutir com espelhos, ainda inventarei alguma literatura? O que farei, se não puder lançar palavras que o alcancem em qualquer endereço do globo? Você ainda se interessará pelo que eu insisto em enviar?
  Se nunca mais você passar pela minha rua, como saberá que escrevo para você?

    Muitos domingos passados e os armários já voltam, lentamente, a ser bagunçados de novo, minhas leituras começam a acumular, a insônia já se instala na minha cama,  adio as vitaminas até esquecer de tomá-las; mas  os seus cabelos, de herança flamejante, nunca saem da minha lista de desejos pós-domingo. Eu nunca te via aos domingos. Era o mistério do seu desaparecimento que me encantava, agora angustia.
 Minha esperança é vermelha; meu amor é pontilhado, nunca é espaço completamente em branco. O que fazer se uma porta não se abre mais para ouvir a sua voz? Esperar calmamente pela passagem dos domingos ou inventar um outro domingo em que a sua ausência seja silenciosa e inofensiva; nunca uma dor? Um domingo que não seja só um desdobramento dos outros que ainda virão; um domingo de amores de outras cores possíveis e que frequentem mais a minha rua.


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