sexta-feira, 1 de maio de 2020

Faltou dizer que eu falo muito depois das primeiras três semanas

   Faltou dizer que eu quero que você venha, quando digo que não precisa. Que eu não preciso de nada do supermercado, mas se trouxer o biscoito da vaquinha e uma caixa de chá, sempre que eu disser que não preciso de nada, vou gostar. Faltou contar que eu fiquei intolerante à lactose, a única descoberta por enquanto, e que tomo menos cappuccinos, porque não acho graça naqueles com água ou com leite zero lactose. Faltou dizer que a Rose casou e que não foi com o Evandro. Acredita? Confusão deles lá. É fofoca, eu sei. Mas é que ela está feliz, tão feliz; que eu também fiquei. Faltou dizer que ouço Zélia Duncan todos os dias, agora. Não sei explicar, mas ouço e danço ou choro, quando não dá para dançar. Não sei se iria gostar da minha playlist recente, mas gostaria que dissesse que gosta. É a única mentira que não corrói as relações.

  Faltou dizer que o gato não é macho - um ano e meio para eu descobrir isso - é uma fêmea, e que está grávida. O veterinário disse ontem e eu não sei o que fazer com uma família de gatos nesse apartamento. Serei expulsa pelo síndico ou eternamente odiada pela gata, com nome masculino, se eu não deixá-la cumprir com a sua maternidade. Faltou contar que eu sinto saudade daqueles meninos da escola, lembra? Irmãos, os gêmeos. E que aquela conversa com um deles fica voltando sempre. Lembra? "Você queria ser o quê quando crescesse?" e, então, eu respondi e ele à queima roupa, "Então por que não é?". O "então por que não é" é das maiores provocações que eu ouvi na vida.  E que os olhos e os sorrisos deles são as maiores saudades desse tempo. Desculpa. Não se sinta ferido pela minha saudade priorizar dois quase desconhecidos, mas é.
   Faltava tanto para eles e eu não consegui ainda fazer nada. Esse também é um pensamento recorrente quando imagino a volta.  

  Faltou um pouco de pó no último café que você fez para mim ou sobrou água; só esse pequeno desequilíbrio que eu senti  na última vez que nos vimos. Porque tudo esteve tão bom, tão leve, eu estava tão contente em sermos nós, as xícaras cheias de café, as maritacas ao fundo e o mundo que gente podia ter; faltou eu dizer isso, eu fui muito feliz aquele dia. E continuo sendo quando me lembro do café ruim e das horas tão boas.
  Faltou elogiar seu perfume, quando eu ia fazê-lo você começou algum outro assunto. Desde então, eu sinto o seu cheiro daquele dia em todos os cafés que tomo. Faltou dizer que eu sou bastante sensível a aromas e cenas. Me lembro de você se levantando para buscar uma cadeira para colocar a minha bolsa, depois se levantando para atender alguém ao interfone; que eu não perguntei quem era, porque foi rápido. Era alguém que bateu no apartamento errado? E depois a luz da sua cozinha, refletindo no vidro de açúcar , no qual os seus dedos batiam, querendo talvez algum ritmo.

  Faltou eu me esquecer das falhas dos outros comigo, das minhas com os outros e, também, comigo. Por isso eu ainda estava tão reticente esse tempo todo; por isso a história de não rotular - e eu acho que falei bem assim, né? E eu detesto essa frase. Acho de um mau mau-caratismo, de uma falta de imaginação e vocabulário absurdos. Mas falei, né?
 Faltou eu me lembrar de todas as felicidades que em tão pouco tempo nós fomos capazes de partilhar, faltou eu me lembrar de que quando essas frases clichês de relacionamentos românticos-amorosos-sexuais-monogâmicos-ou-não pousam no meu colo é porque tenho a habilidade de autossabotagem muito desenvolvida.
  Faltou eu me lembrar de me esquecer das dores passadas, faltou eu me esquecer de me lembrar de todas as vezes que chorei, depois de ter sido tão feliz. Faltou eu ser mais amorosa com a minha memória.

  Faltou a honestidade de preveni-lo sobre o quanto eu sou silenciosa antes das quatro primeiras semanas que convivo com alguém e quando eu estou com fome. E com exceção a situação do apetite voraz, eu falo bastante depois das três primeiras semanas. E gosto muito de ser perguntada, gosto muito de ser provocada aos debates. Faltou dizer que a palavra é o meu encantamento com o mundo; e que, por isso, só emudeço quando desconfio ou estou faminta.
  Faltou eu dizer o meu signo, touro com ascendente em câncer e lua em libra, que eu leio as previsões e que não acredito em astrologia.

  Faltou o eclipse e a lua vermelha, clichê dos namorados. Faltou o banho de cachoeira, a viagem para Ouro Preto, eu apresentar a minha coleção de filmes do Almodóvar, comermos pinhão em dezembro, faltou o milho verde na praia, faltou eu explicar as cicatrizes nos meus joelhos; acho que só expliquei duas delas. Faltou o festival de alguma coisa em alguma cidade, faltou você descobrir que eu não sei fazer a minha mala, me lembro do secador de cabelo e me esqueço da escova de dentes, e que sou absolutamente perdida de direção; preciso de mapa, aplicativo e perguntar a alguém que passe pela rua.
  Faltou um feriado prolongado, uma pousada na serra e desligar o celular. Faltou desligar o celular.

  Faltou viver o que o tempo ainda não permitiu, faltaram as promessas, os desencontros, os sonhos individuais emaranhados para resultarem em alguma cor comum, as dificuldades de ler entrelinhas, poupar dos spoilers, chegar antes no cinema para comprar a pipoca. Faltou chegar atrasado e assistir a outro filme; que depois faria parte do repertório das provocações que quebram geleiras. Faltou não morrermos congelados no inverno, faltou, no meio de um gole de café, mostrar o céu alaranjado do outono que começou e nem comentamos.
  Faltou a informação de que aquele era o último café; de que não teríamos outro por um longo tempo. Talvez não fosse bom saber; talvez fosse melancólico. Melhor que estivéssemos ignorantes e animados pela cafeína. Faltou dizer que o próximo café deixa que eu faço. Faltou dizer ao tempo que há sempre questões que ele pode definir ou indeterminar.  






Nenhum comentário: