terça-feira, 9 de junho de 2020

Para trazê-la aqui e libertá-la na última linha

   Todos a procuram; eu não. Eu nem me interesso pelo seu endereço, porque não voo até você. Eu não sei da sua rua, eu não ouvi os cães que latem quando você passa, os lugares pelos quais passeia ou, apressada, passa todos os dias; o que quero ver é só o que quiser me mostrar e quando. Não me adianto em perguntar o seu nome, o seu telefone ou os seus interesses; eu não espero que um dia talvez me diga ou não.
  Eles mandam flores ou dizem que querem mandar e, por isso, justificam o interesse pelo endereço. Eu não. Eu não quero dar o que você já tem, não quero ser as mãos que escolhem as belezas que você merece; eu não quero tentar convencê-la de que sou seu par por um punhado de flores, que nunca serão o bastante.
 Todos a chamam pelo seu nome com doçura nos primeiros invernos, mas mudam com o tempo. Eu não falo de nome, eu não  uso outra voz que não seja sempre a minha; essa mesma, meio trêmula, meio rouca, meio inibida.

  Todos a exaltam; silenciam ou entoam hinos para forçarem-na a ser divina. Mas eu não. Eu reconheço sua deidade, mas aceito toda ela alcançável e terrena. Eles dão altares, mas oferecem uma só religião. A minha oferta é só partilha e mais nada. Não tenho algo de religioso para prender você; a quem desejo espírito livre e plenitude na descrença, se assim quiser.
  Eles bordam toalhas, condenam pecados, fazem tapetes de pétalas e vão querer batizar seus filhos. Eu não. Não desejo que os meus herdeiros a consumam, que a desviem dos seus sonhos e que, mais tarde, também a exaltem sem nunca tê-la conhecido de verdade.
 Mas se quiser frutos, se quiser se estender em outros corpos dentro do seu, eu também posso ser mãe, mais do que eles que são só pais. 

  Eles a querem romântica, admiradora da lua enamorada por eles que se fazem poetas que falam de lua. Eu não; não vou fazer frases que comparem a sua presença à luminosidade da lua, eu não vou apontar a lua para você  nem vou citar qualquer coisa da lua; eu só vou escolher sempre o lugar em que eu fique de costas para ela e você sozinha a descubra. Daí o encontro é só seu e dela. Não vou intermediar o que você pode sozinha encontrar.
  Todos querem que você guarde ternas lembranças deles; eu não. Eu quero é que você me esqueça no tempo, quando assim quiser, quando assim acontecer, quando eu não mais caber nas histórias que você escrever. Eu quero ser esquecido diariamente, até ser uma lembrança muito antiga e apagada, num fundo de gaveta que você vai demorar a abrir de novo.

  Eles a escolhem em algum tempo determinado, um dia acordam querendo você, admirando-a como nunca. Eu não; eu sei de você antes de saber, antes que eu soubesse que amor tinha nome. Eu não vou me apaixonar por mais ninguém como eu sou por você; o que não significa que os meus olhos só se entregarão a você ou que o meu coração não poderá bater por outras, outros. E jamais pedirei o mesmo, porque a minha admiração pelos seus olhos apaixonados é muito maior do que a minha estima pela boa reputação de sentimentos domados.
  Eu elejo você nesta e noutras vidas; eu desejo você, mas eu não imploro para ser minha cativa apaixonada.

  Eles elegem musas e as destroem com o tempo; arrancam pedaços porque parecem joias e cabem nos seus cofres escondidos, confinam o que desconfiam escapar: apagam luzes, silenciam vozes, vestem os corpos, definem papéis, horários, espaços que pode visitar. Eles querem você aquela uma, que a miopia deles permitiu ver. Eu não.
  Eu sei da sua multiplicidade crescente, da sua luta diária em conhecer novas gentes, idiomas, formas de vida e consciências de morte. Eu sei que lê, que atravessa ruas, que confidencia aos garçons, que conhece o fogo, que mergulha sozinha e escreve a desconhecidos. E eu nunca perguntarei nada. E a escutarei sempre que quiser.

  Todos querem que tatue eternidade na pele que eles dizem devotar. Eu não. Se me nega, não desonro seu nome, sua escolha, sua impossibilidade de retribuir ao que eu posso oferecer.
  Eu não estarei no seu batente quando você sair pela manhã, no dia seguinte ao seu implacável não mais, não limitarei seu coração, não a obrigarei à presença nenhuma. Eu não vou estar lá para vê-la por um última vez, mas instindo para que não seja. Eu não vou ser obstáculo para alguém a quem prometi pontes.
  Eu não estarei no batente de quem, um dia, abriu a porta de entrada tão delicadamente e noutro, pediu para que eu, depois de sair, a fechasse.

  Trouxe você até aqui porque a quero inteira ou  mesmo em pedaços, mas que sejam todos seus, que os recolha todas as vezes que se descolarem de você. Não quero um fio do seu cabelo, não a quero presa em castelos, em mentiras, em uma estrofe de um poema, nem no meu amor desmedido; quero você liberta. Quero você sua, sempre.
  Esse texto é seu, se quiser, mas eu não quero que fique nele. Volte quando quiser, a casa é sua e as portas estarão sempre destrancadas. Eu só prometo escrever um lugar de onde possa sempre sair e se quiser voltar não fazer cerimônia de tocar campainha ou bater palmas. Eu só quis construir uma casa sem paredes, um texto em que você não se sinta mais sufocada.


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